Culturas Regenerativas – Não se Acha a Paz Evitando a Vida
Outubro 2023
Escrevo este artigo na véspera do Dia Internacional da Paz e imediatamente a seguir à recente cimeira dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), realizada a 18 e 19 de Setembro, que integra e deu o arranque, à 78.ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, a decorrer em Nova Iorque, EUA, com dezenas de chefes de Estado e de Governo de todo o mundo.
Nesta cimeira, António Guterres apelou à mobilização e compromisso dos Líderes mundiais, alertando que “os ODS necessitam de um plano de resgate global” e que “apenas 15% das metas dos ODS estão no caminho certo para serem alcançadas até 2030 e que existe até uma regressão em alguns dos objetivos”. O secretário-geral da ONU instou ainda ao “fim da tripla crise planetária: alterações climáticas, poluição e perda de biodiversidade.” (Fonte Diário Económico 19 Setembro)
Em lado nenhum nas notícias lidas, vejo a Paz referenciada, mas todos os temas estão relacionados com ela, com a cada vez maior fragilidade em que ela se sustenta, e com a tensão crescente, que agita diferentes lugares e comunidades, um pouco por todo o mundo, face aos desafios que vivemos e ao cansaço acumulado.
Mas afinal o que é a Paz? A quem serve a Paz definida, consensualizada?
Vamos como sempre, observar diferentes olhares sobre a Paz:
Neste artigo não temos espaço para explorar as raízes da Paz nas cosmologias sociais matriciais do Oriente e do Ocidente, ou de divagar na chamada “paz imperfeita”, que sublinha a natureza sempre inacabada dos momentos de paz, e que a configura, não como um altar de esplendor, “mas sim como uma alternativa que se vai construindo a partir de combates plurais contra a violência em vista de relações sociais duradouras, justas, pacíficas e… imperfeitas.” (Professor José Manuel Pureza em “Construções Teóricas da Paz).
As narrativas de construção de Paz, ainda estão carregadas de “combate”, demonstrando a forma como a psique coletiva está povoada de um pensamento dual, mecanicista e bélico.
Não foi sempre assim. Aliás o Círculo, que hoje continua a ser aplicado em contexto de facilitação de grupos, tem como referência, práticas de povos indígenas de diferentes locais do mundo. “Reunir-se numa roda para discutir questões comunitárias importantes, é algo que faz parte das raízes tribais da maioria dos povos.” (Kay Pranis, Processos Circulares de Construção de Paz)
Então quando ficamos com a visão de que é o Ocidente que traz os valores democráticos de construção de Paz, isto não é real. Na verdade, houve uma apropriação (e deturpação) de uma série de valores, práticas e conhecimento, que são originalmente de outros povos.
O Dia internacional da Paz é celebrado anualmente a 21 de Setembro. Este Dia foi estabelecido em 1981 e proclamado na Resolução 55/282 adotada na Assembleia Geral da ONU a 28 de setembro de 2001.
Em Eurocid pode ler-se: “É um dia dedicado ao reforço dos ideais de paz, através da observação de 24 horas de não-violência e de cessar-fogo em todo o mundo.
O tema deste ano é «Ações para a Paz: A nossa ambição para os Objetivos Globais. Trata-se de um apelo à ação que reconhece a responsabilidade individual e coletiva de promover a paz.”
Na UNESCO pode ler-se “O Dia Internacional da Paz celebra o poder da solidariedade mundial para construir um mundo pacífico e sustentável.” E ainda “...as barreiras da paz são complexas e abruptas – nenhum País pode resolvê-las sozinho, pois isso exige novas formas de solidariedade e ação conjunta...” ao que Audrey Azoulay, Diretora Geral da UNESCO assina: "Ser responsável pela paz significa agir para superar as falhas e as injustiças que continuam a nos impedir de alcançar um mundo igualitário. Porque um planeta corroído pela divisão é um planeta que não conhece a paz".
Vale a pena lembrar uma citação da ONU, que não sendo deste ano, é fulcral: “A paz é sinónimo de sociedades resilientes e estáveis, onde todos podem prosperar e desfrutar das suas liberdades fundamentais, em vez de terem de lutar pelas suas necessidades básicas.”
Ora a questão é precisamente esta: Nem todos podemos prosperar e/ou desfrutar das liberdades fundamentais. A desigualdade e injustiça que nos atravessam, desde sempre, vão-se moldando aos contornos contextuais e temporais, mas o que lhe está na base, é transversal e intemporal: A ilusão de separação e a dominação (uns dos outros e uns sobre os outros) e aqui se incluem, Humanos, Não-Humanos e Mais que Humanos.
E um olhar isento e amplificado do mundo, sob diferentes lentes (não apenas as “oficiais”, comummente acatadas), permite-nos constatar que, mesmo os valores democráticos de igualdade, justiça, paz, desenvolvimento, não servem a toda(o)s, servem na verdade, a muito poucos, e à custa de muitos.
Pode parece um exagero, esta afirmação. Mas um olhar qualitativo pelos vastos territórios e as suas populações – múltiplas e quantificadas, devolve-nos a devida proporção (e humildade) no globo e na complexa e vasta teia da vida.
O exemplo do PIB, ou do rendimento per capita, como fatores de medição de crescimento da economia, não servem a todos. À custa do quê e de quem se deu este “crescimento”? A quem serve este crescimento? A quem roubou dignidade, paz, vida?.
Agora vivemos uma transição energética, minada por um discurso “verde”, tendencioso, pernicioso e o mais grave, sustentado por Governos, Investidores e Representantes que deveriam salvaguardar a proteção de um legado que é comum, e que não pode ser apropriado, explorado e destruído, em função de interesses económicos, políticos e geo-estratégicos, que estão longe de servir o bem comum e a vida.
Aliás, repensar e transformar as economias, é a questão de fundo, que impacta a paz e o nível de resiliência e estabilidade das sociedades.
Governos, investidores e sociedade civil – devidamente representada, devem partilhar a responsabilidade, sobre como as decisões tomadas, impactam no sistema alimentar, educativo, de saúde, de segurança, de bem-estar. Tudo o que perpetue uma economia baseada em combustíveis fósseis e em relações coloniais – de dominação, de desequilíbrio de poder, coloca em causa a paz, a vitalidade e a continuidade do nosso maior legado: a vida!
E a este propósito, não posso deixar de aqui citar, uma reflexão recentemente partilhada, pelo Autor que inspirou o meu último artigo - Bayo Akomolafe:
“A colonização não é tanto a extração de riqueza de uma terra subjugada ao conquistador, mas sim o encolhimento (shrinking) da experiência, para se ajustar aos quadros de perspetiva do conquistador; é a imposição de uma única forma de saber, de um único regime de observação (noticing), de um único aparelho para a produção de sentido - de modo que, o que se perde verdadeiramente não é o ouro, o milho e os homens enquanto tais, mas as formas de dar sentido à vitalidade vibrante (vivacidade) que nos rodeia.
O que se perde verdadeiramente - num mundo cada vez mais convencido de que a única forma de medir a verdadeira riqueza é através de dígitos, paisagens cicatrizadas, árvores derrubadas e horizontes artificiais em ascensão - é a liberdade de pensar de outra forma. Também não se trata apenas do facto de as práticas coloniais nos terem tirado a nossa cultura, mas sim do facto de nos terem imposto uma autenticidade estática, obrigando-nos a conformarmo-nos com uma imagem do aspeto ou do som de um verdadeiro indígena - e, de facto, negando-nos o direito de nos afastarmos dos nossos próprios algoritmos.
A descolonização de nós próprios não deve, portanto ser feita, tentando regressar a uma imagem pura do que significa ser indígena (uma imagem que pode já não ser verdadeira), ou tentando apagar as marcas duradouras nos nossos corpos que foram feitas pelas incursões coloniais e pelas novas afinidades, mas sim desviando-nos livremente e perdendo o rumo generosamente – fazendo amizade com os lugares que nos sustêm e seguindo com o fluxo perturbador das práticas mundanas (worlding) que nos ligam àqueles que nos violaram.”
Esta última afirmação do Autor, pode ser difícil de digerir para um pensamento racional e/ou tradicional. Contudo, Bayo, que se posiciona como pós-ativista e que chama a atenção para a forma como a nossa busca obsessiva pela resolução e pela “cura”, é ela própria responsável pelo “problema”, considera que “há momentos em que a esperança e o otimismo podem tornar-se um obstáculo para o florescimento. A dor, o luto são em si mesmos, um ativismo, um convite a criar novas formas de arte e a ser “esticado” (preparado) para novas formas e novos modos de ser.”
E a mim, que vejo Seres violentados, em profunda relação e amizade com os lugares que os sustêm (e prendem), e que vejo como a dor, o luto (e as cicatrizes) e a alegria (e vivacidade) não são incompatíveis, esta frase diz-me muito.
A normalização da violência, da extração (dos solos e dos corpos), da pobreza, da instabilidade, dos conflitos e das crises, não é nova, vem desde o colonialismo. Perpetuamo-la todos, enquanto continuarmos a viver de forma dominadora e manipuladora.
Se é verdade que se defende cada vez a subsidiariedade – trazendo a decisão para o plano local mais imediato, assistimos a uma vaga contínua de “Worlding practices” que ainda não é co-participada por vozes cruciais. Se é verdade que é preciso haver um diálogo e concertação global para fazer face aos desafios complexos e transversais, muitas vezes, é difícil olhar para o lugar, com a lente dos objetivos globais. Ver como como o sul continua a seguir os passos do norte. Como continuamos centrados nos objetivos, nos projetos e práticas, e não nos Lugares.
E a Paz começa sempre no Lugar. No solo, no corpo. Na Família, em Casa, na Escola, Na vitalidade, na harmonia, na salutogénese do organismo, da comunidade, do Lugar.
“Não se acha a Paz evitando a vida” (Virginia Woolf), que é o que muitos de nós fazemos nas nossas bolhas protegidas, exilando vozes, partes sombrias e lamacentas, tensão, caos, vazio, que fazem parte da ciclicidade entropia-sintropia, do continuum vida-morte-vida.
Não posso deixar de trazer uma citação recente do Nobel da Paz Muhammad Yunus: “Se queremos mudar as coisas, temos de voltar à Educação” e da Professora Helena Marujo – Titular da Cátedra da UNESCO em Educação para a Paz Global Sustentável: “É preciso renovar uma dimensão de cidadania para a contribuição de bem comum (...) para um olhar que não seja o da competitividade ou bem-estar pessoal (...) de inspirar e tocar, não apenas do ponto de vista do conhecimento científico, que obviamente é fundamental no processo educativo, mas no que diz respeito à construção do Ser Humano – que pessoas precisamos de ter na vida, para cada contexto, cultura, momento histórico?”
Termino com uma afirmação do livro “Educação para a Paz Global Sustentável” desta Professora em Co-Autoria com Hermano Carmo e Fernando Serra, e na qual me revejo: “A paz só será preservada através de formas de vivência em conjunto que nutram processos participados, inclusivos, justos, sustentáveis e dignos para todos os seres vivos e planeta, no melhor interesse comum.”
E é em círculo, numa democracia participativa, baseada na horizontalidade das relações, valorizando as potencialidades individuais e a força da comunidade, que a Paz se constrói e nutre, no quotidiano.
Fonte: Revista Economia & Mercado, Edição Setembro