Culturas Regenerativas - O Caminho, as Perguntas e a Teia
Agosto 2023
Corria o ano de 2016, e eu começava literalmente a primeira obra da minha vida: Construir uma escola na aldeia de Mahungo, no Bilene, num local cedido pelo Município, em que não havia ainda água ou electricidade.
Cerca de sessenta crianças vinham às aulas nesse ano lectivo, ainda na palhota inicial, que ficava a 10 minutos deste terreno, e a complexidade que emergia, exigia de nós – Associação já formalizada em Moçambique, cada vez mais recursos. Não apenas financeiros, suportados ainda por mim na altura, mas também uma espécie de omnipresença, omnicompetência e sobretudo paciência e resiliência. Um caminho que pedia atenção e cuidado para não entrar em meandros perigosos.
Uma das pessoas a quem pedi ajuda, que estava bem por dentro do tema – e muito bem posicionada no mercado do terceiro sector, teve a amabilidade e transparência de me explicar, sem filtros, as regras do jogo da assistência humanitária e a impossibilidade – não assumida - de irmos à corrida, onde só entravam “organizações previamente qualificadas” que obedecessem aos requisitos do sistema.
Eu conhecia este sistema, a partir de outros lugares, era a primeira vez enquanto fundadora de uma pequena organização, sem qualquer tipo de lobby.
A partir daí, outro caminho independente se desenhou, mas claramente assente no poder da comunidade, e da sinergia que um colectivo pode fazer emergir.
Nunca me deixei fascinar pelos convites que surgiram para “parceirizar” com grandes projectos, pois era claro que, alguns não passavam de conversa fiada, e outros, sendo reais implicavam vender a alma (e a essência) e/ou ficar escrava de doadores (de números, de relatórios e acima de tudo: de exigências desumanas e extractivistas) que eu (re)conhecia de outros mundos.
Sempre achei absurda a segregação entre sectores empresarial, público e social e mantive sempre relação com todos, enquanto consultora e enquanto fundadora da Kutsaca, mas sempre com reserva e atenção aos perigos de perseguir os fundos, em vez dos sonhos.
Hoje, enquanto Líder de uma pequena ONGD, reconheço e assumo com orgulho e discrição, que trilhar um caminho diferente exige coragem, humildade e perseverança. Mas a minha grande aliada, nesta que é uma jornada de quase 10 anos, é a curiosidade experimental. É a fazer perguntas e a habitá-las que eu vou encontrando caminhos. As respostas raramente me chegam. O que chega são sensações de paz ou de alerta, impulsos de vontade ou de fuga. São sensações viscerais de abertura ou fechamento. E claro, é a voz que fala baixinho, que só se ouve no silêncio – há quem lhe chame intuição. Para mim, é uma espécie de bússola que me vai mostrando por onde é, a cada momento.
Num destes impulsos imediatos de vontade, no mês passado, inscrevi-me no International Development Course organizado pela Plataforma Portuguesa das ONGD’s, em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, O ISEG e o Instituto Pedro Nunes. Não sendo novos os temas, está de Parabéns a equipa organizadora, pela qualidade dos oradores e das reflexões geradas, nas 4 sessões subordinadas a diferentes temas.
E é precisamente sobre o tema de uma das sessões “INGO’s and Localization”, que eu gostava de gerar uma reflexão. Nada melhor do que começar com a pergunta de Themrise Khan, Investigadora independente e analista de políticas, baseada no Paquistão e Consultora internacional com vasta experiência no Desenvolvimento Internacional:
“A quem nos referimos quando falamos em Organizações Internacionais?
Porque é que uma organização no Paquistão é considerada local e uma Organização no Reino Unido é considerada Internacional?”
E não há dúvida, que esta sua pergunta é poderosa. E reflecte por si só, que o tema da descolonização da ajuda, e a emergência da localização, que não é novo, e tem a ver com a desigualdade de poder – e dinheiro claro – que é absorvido pelos gigantes que todos conhecemos e depois distribuído pelos “parceiros qualificados”, chegando muitas vezes à linha da frente os valores residuais (fixados em pelo menos 20% em 2016), deixa antever que:
Não se trata apenas de questões monetárias, trata-se da forma como vemos os outros, como muito bem referiu esta Investigadora.
O sentimento de superioridade é notório nesta e noutras classificações. E a semântica patente no mainstream social “beneficiário”, “parceiro de implementação”, “problemas a resolver”, “impacto”, “escalar”, levam-me logo para as histórias de Heróis-Salvadores que abordei ao de leve no artigo passado.
Alguns dos Autores, entre os quais Keeanga Yamahttha Taylor, uma académica, autora e activista da NorthWestern University, questiona até com muito sentido: quem criou o conceito? De onde vem? Serve a toda(o)s? Ele ainda se mantém? Ou a própria semântica já precisa de ser ajustada, de acordo com a transformação vivida?
As organizações são todas locais! O que acontece é que, as Organizações do Sul, em particular as baseadas nestes territórios descredibilizados, não são consideradas capazes pelos doadores internacionais (ou será locais?).
Kan acrescenta que, termos como a descolonização ou localização não nos levam a lado nenhum. É retórica para politizar a discussão.
Assim como considera que, devemos distanciar-nos dos termos Norte global e Sul global, que cria mais divisões, salientando que houve mudanças geopolíticas e que há Países do Sul que mudaram/aumentaram o seu poder. Que estas organizações “internacionais” devem simplesmente questionar-se com frontalidade, se faz sentido continuarem a existir. Talvez há 15 anos fizesse sentido, mas o mundo mudou.
Deborah Doane, Directora da Funder’s Initiative for Civil Society, considera também importante sairmos da dicotomia Norte-Sul e trabalhar para o que chama de “Shift the Power”, pensar colectivamente para conseguir a mudança social em cada contexto, promovendo a liderança local e a subsidiariedade, o que pressupõe as grandes ONGD’s abrirem mão do poder e criar novas redes focadas em relações de interdependência e num caminho mais equilibrado e conjunto.
Ora isto não é naturalmente fácil.
Dylan Mathews da Making Peace sublinhou sem filtros, a “hipocrisia do sistema humanitário” e a “dificuldade em falar nas questões basilares: Desigualdade de poder e racismo estrutural. É preciso mudar primeiro a mentalidade e só depois as práticas.”
Se é verdade que as políticas e práticas revelam que a mentalidade se mantém colonial: a forma como estão configurados os processos de financiamento, a linguagem complexa e obsoleta e até a língua: a que propósito é que uma organização local tem de concorrer em Inglês para um fundo que se diz nacional?
Também é verdade que os sistemas se retroalimentam, o macro influencia o micro, mas o contrário também acontece. E por isso, pequenas práticas quotidianas num pequeno lugar ou sistema, criam realidade, outros modos de fazer e de viver. E já dizia o Buckminster Fuller:
"Nunca se mudam as coisas lutando contra a realidade existente.
Para mudar alguma coisa, construa um novo modelo que torne o modelo existente obsoleto."
Continuamos sem dúvida, com um trabalho de fundo a fazer nas questões basilares (difíceis de ver e assumir) e a forma como sector social, empresarial e público se relacionam, pede mudanças profundas.
Mas a busca de culpados, a desvalorização gratuita dos caminhos percorridos e o combate: dos outros, dos problemas, deixa-nos nas mesmas espirais degenerativas.
A verdade é que sinto que as coisas estão realmente a mudar. Há cada vez mais abertura e vontade genuína em escutar, em incluir outras vozes, em experimentar novos caminhos. O caminho é muito mais importante do que a forma/organização. A forma/organização pode no entanto, ajudar ou prejudicar o caminho. É preciso estar atenta(o).
O que agora sinto mais evidente, vem de longe, foi semeado há muito, em conjunto, por muitas vozes distintas. Já dizia o nosso querido Senhor Domingos, Secretário do Régulo e nosso braço direito: “Mana, a sua igreja são as crianças, e o Deus está a ver”.
Não tenho Igreja, não tenho pretensão de tornar algo obsoleto e tenho cada vez menos convicções. Mas continuo com muita vontade de continuar a fazer perguntas. De escutar diferentes vozes. E de criar pontes. Podem ser pequenas, daqui prali. De vez em quando afasto-me e vou vendo uma teia já jeitosa.
E vou-me perguntando: A quem serve esta teia? conecta ou exclui? Vivifica e regenera ou desgasta e degenera? Liberta ou prende?
Acima de tudo, que ela sirva ao Lugar, aos que o Habitam e aos que hão-de vir. E à Vida.
Fonte: Revista Economia & Mercado, Edição de Julho