Culturas Regenerativas - O Meu Papel no Todo Maior

Junho 2023
 

Escrevo este artigo ao mesmo tempo que preparo uma apresentação para o ISEL – Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, um parceiro com quem orgulhosamente colaboro no âmbito da Kutsaca, mas com quem francamente me identifico a nível pessoal.

O meu desafio é o habitual – Eu sei qual é a história que as pessoas gostam de ouvir (e de participar). Mas a minha voz interna, e o corpo todo, sempre me recordam, que a responsabilidade na história que se conta é enorme. Não só porque é preciso (tentar) honrar todas as vozes (não apenas as minhas, ou da minha experiência, que é naturalmente subjectiva), mas também porque a narrativa que eu escolho, cria realidade, constrói caminho.
 

E a realidade não é romântica, nem o caminho é seguro ou certo. Na minha vida, imprópria para cardíacos, basta-me a candeia para o próximo passo. Embora ao longe, algures no horizonte (e dentro do coração), eu saiba que caminho para a utopia e que não importa se lá chego ou não, importa que eu dê passos nesse sentido e contribua para desbravar caminho aos que me seguem.

Há uma razão forte pela qual, nesta fase da minha vida, me interessa particularmente atuar na Educação para a Cidadania Global: As narrativas que nos chegam nos meios mais formais, institucionais, educacionais, mas também mediáticos, continuam toldadas por um pensamento linear, antropocêntrico, centrado no paradigma de “fazer o bem” e de “resolver problemas” e não menos importante, parcial. E isso impacta na maneira como regeneramos ou degeneramos os sistemas.

Na minha viagem entre os Mundos, e após os primeiros choques iniciais, fui percebendo que, a informação é-nos revelada na mesma medida em que nos predispomos a recebê-la. Mas sempre gradualmente, por fases e camadas, e ainda bem, porque à medida que vamos adentrando, é tão avassalador, que não aguentaríamos tudo de uma só vez.
 

Recebi nos últimos 9 anos na Aldeia de Mahungo, vários jovens e adultos que chegam frequentemente do hemisfério norte com vontade de mudar (e salvar) o mundo. Frequentemente com boas intenções e vontade de “Fazer o bem”, são surpeendidos no terreno com questões práticas, subtis e profundas que os deixam confusos, perplexos, bloqueados, mas também apaixonados, energizados e com sementes potentes que precisam sempre de um espaço seguro e compassivo para maturar.

Não deixa de ser curioso que, os do Norte, querem frequentemente“ajudar” o Sul e que os do Sul, (também cansados da interferência), querem finalmente viver uma vida confortável (que antes só era acessível a uma raríssima elite). Não se enquadra aqui claro, o Povo, que em todos os lugares do mundo, é sempre quem paga a fatura e como diz Mia Couto “A maior desgraça de uma nação pobre, é que em vez de produzir riqueza, produz ricos”.
 

As maiores resistências (e discussões acesas) que encontrei, estão sempre ligadas ao emaranhamento que é difícil de ver e assumir. É que frequentemente, nós achamos mesmo que somos da equipa dos bons, e à medida que a vida nos mostra – a toda(o)s -  que não é bem assim, cada um(a) tem o seu próprio caminho de aceitação e integração (ou rejeição e fuga).

Não é apenas o modelo Educacional e Institucional que incentiva os jovens a mudar o mundo, a partir de uma perspectiva de Herói/Salvador e frequentemente centrado em combater e resolver problemas. Até no entretenimento, o cinema, a literatura, a música, e as histórias que contamos para adormecer os nossos filhos, estão povoadas disto.
 

Ninguém nos conta que, se nós – os sabedores que portamos a verdade do Mundo, deixarmos de interferir nos Lugares e nas suas Comunidades, a essência e biointeligência dos sistemas, volta a ter espaço para emergir.

Interferir anda frequentemente de mãos dadas com influenciar, controlar, manipular, mas também com extrair, usurpar, fracturar.

Para Achille Mbembe, “o nosso impacto sobre o planeta é tal, que a humanidade se tornou uma força geológica (...) e mais do que nunca, a função do poder é tornar possível a extracção (...)

A fractura, o fissuramento e o esgotamento não concernem apenas aos recursos, mas também aos corpos vivos expostos ao esgotamento físico e a todos os tipos de riscos biológicos, às vezes invisíveis.”Achille Mbembe in Brutalismo.

Os vocábulos utilizados por Mbembe não são inocentes, são importados da mineração, uma das principais actividades económicas do continente africano da época colonial, que permanece, e que por mais que nos seja difícil de aceitar, com o conluio de toda(o)s nós.
 

O lado negro do mercantilismo capitalista, envergonha-nos a toda(o)s, norte e sul, não apenas às elites políticas e económicas, mas também a nós educadores, legisladores, eleitores e consumidores.

Num mundo em que o consumidor tem mais poder do que o eleitor, a desresponsabilização tem cada vez menos lugar.

Moçambique pode dizer-se, é uma “mina gigante” de tesouros apetecidos: Gás natural, Grafite, Ouro, Rubis, Madeira, Carvão e Areias pesadas, das quais se extraem minérios raros como ilmenite, rútilo, zircão, nomes que o comum cidadão nem sequer conhece, mas que são imprescindíveis à Indústria tecnológica, em que se incluem as nossas queridas telecomunicações, mas também o sector da aeronáutica.
 

A primeira vez que fui a Tete em trabalho, fiquei doente. Não creio que tenha sido apenas pelo choque térmico ao qual também sou sensível. A minha sabedoria instintiva, visceral e ancestral, foi recordada do ciclo de violência antigo que continua, com outras máscaras de modernidade. Ver a terra esventrada (ou doente) é algo muito doloroso para mim. Os corpos que a esventram, por necessidade de pão para a boca, são frequentemente os negros.

A nós – classe média/alta – que não se confina em cores nem em continentes, cabe-nos comprar os produtos finais, sem termos de lidar com as histórias que estão por trás dos nossos luxos, que entretanto se tornaram bens de primeira necessidade.

Só que por trás dos nossos luxos, está muita falta de dignidade, desumanização, riscos biológicos e ecológicos.
 

E não pretendo com isto, levar-nos para a polaridade utópica de deixarmos de comprar e usar tudo o que degenera os sistemas. Pretendo apenas lembrar que, é mais importante que todos façamos uma pequena parte, do que muito poucos façam muito.

Não basta reduzir os danos ou fazer o bem ao planeta e aos ecossistemas – que é onde se foca a sustentabilidade.

Não basta criar programas de ajuda e desenvolvimento (e voluntariado), alguns francamente ingénuos, outros nem por isso (como disse no meu último artigo). Lamentavelmente por vezes até, doando com uma mão, e retirando com a outra (interesses, influências, recursos).
 

Não são só as Instituições que gostamos de culpar – os maus – que fazem isto.

Somos nós também, quando “vamos ajudar os pobrezinhos”, mas a seguir compramos os produtos feitos pelos Pais dos pobrezinhos que ajudamos.

Somos nós também, quando educamos as nossas crianças para serem os melhores, porque só há lugar para os melhores e os Heróis, perpetuando no inconsciente colectivo que os outros – aqueles que não foram os melhores nem fizeram “nada de especial” - são uns fracassados.

Somos nós, que nesta sociedade cada vez mais individualista e focada na sua família nuclear, cuida do seu quintal, achando que vai passar imune à interdependência e reciprocidade da vida.
 

Somos nós ativistas compulsivos que andamos sempre a combater problemas, e que precisamos de parar, respirar fundo e ganhar discernimento.

E somos ainda, tristemente nós, os que “ajudamos” os países pobres ou em desenvolvimento (o que quer que isso queira dizer), “pois se eles decidem vir todos por aí acima temos um problema sério” (como eu já ouvi de nomes impensáveis).

E por fim, nós os vendedores de sonhos de propósito e do direito natural à abundância – que às vezes já é excesso, e que depende claramente da carência de outros, em Lugares que não vemos.
 

Precisamos apenas de respeitar as Leis da Vida, pois ela é soberana. Precisamos de deixar de interferir. De ouvir e respeitar os Lugares. De permitir a sua auto-expressão e auto-determinação e evolução.

E nós Aprendizes-Peregrinos-Praticantes, temos a responsabilidade de relembrar – a nós próprios e a quem connosco se cruza – as perguntas-guia:

- A forma como estou a viver serve a Mim, à minha Família, à minha Equipa, à minha Comunidade, prejudica Outras? ao Planeta?

- De que forma estou a relacionar-me com a Vida?

- O que preciso de compreender antes de agir?

- Como é que eu ativo o meu estado de agência?
 

Muhammad Yunus, considera que “só podemos ter paz quando acabarmos com a pobreza”, eu diria até que, acabar com a pobreza me soa mais uma vez a combate, a resolver problemas. Mas podemos pelo menos, fazer o que estiver ao nosso alcance para não contribuir para aumentar a desigualdade, extracção e desumanização. O Nobel da Paz Yunus acrescenta que “Se queremos mudar as coisas, temos de voltar à Educação “, e aqui concordo totalmente. Mas que seja uma Educação feita por Toda(o)s e para Toda(o)s, centrada no Bem Comum e adequada a cada Lugar e contexto e aos tempos que vivemos.

Fonte: Revista Economia & Mercado, Artigo Maio

Acompanha as nossas histórias, conteúdos mensais e agenda.

Acompanha as nossas histórias, conteúdos mensais e agenda.

 

Preencha todos os campos.

Ao submeter, aceito a Política de Privacidade da Reflorestar.


 
Aqui encontras conteúdos que podes
partilhar com a tua comunidade local de
forma simples, apelativa e útil.
Convida a tua Organização a ser parceira
e pede os teus acessos.
PREENCHA OS DADOS

Não tens conta? Pede o teu acesso

Já tens conta? Efetua o teu login