Março I Niketche - Uma História de Poligamia

Niketche – Uma História de Poligamia

Paulina Chiziane
 

“Vou ao espelho tentar descobrir o que há de errado em mim. Vejo olheiras negras no meu rosto, meu Deus, grandes olheiras! Tenho andado a chorar muito por estes dias, choro até demais! Olho bem para a minha imagem. Com esta máscara de tristeza, pareço um fantasma, essa aí não sou eu.”
(...)

“– Julieta, minha Ju, foste enganada. Arrancada da adolescência para a velhice, sem meio-termo. A tua vida é um verão eterno. E tu, Luísa, minha Lu, serás desejada enquanto tiveres fogo nesse belo corpo. A vida é uma eterna mudança, um dia quente, outro dia frio. O que será de ti, quando o inverno chegar? Saly, tu és as usada nos momentos de pausa, és um petisco, uma refeição ligeira, intermédia, para quebrar a monotonia na ementa de amor. A Mauá é a mais amada, apenas de momento. Os amores do Tony são efêmeros, sabemos disso.
(...)

– Somos éguas perdidas galopando a vida, recebendo migalhas, suportando intempéries, guerreando-nos umas às outras. O tempo passa, e um dia todas seremos esquecidas. Cada uma de nós é um ramo solto, uma folha morta, ao sabor do vento – explico. – Somos cinco. Unamo-nos num feixe e formemos uma mão. Cada uma de nós será um dedo, e as grandes linhas da mão a vida, o coração, a sorte, o destino e o amor. Não estaremos tão desprotegidas e poderemos segurar o leme da vida a traçar o destino.”.
 

Embora nos faça viajar pelas dores provocadas pela vivência da poligamia, e por toda a distorção entre feminino e masculino que a antecede, esta história vai muito além do retrato da sociedade pós guerra civil em Moçambique (será mesmo pós-guerra civil?...) A história contada por Rami, a esposa de Tony, que mantém além dela, mais quatro mulheres e acumula filhos, fala-nos sobre abrir espaço para outras possibilidades, sobre coragem para criar laços em lugares improváveis, sobre resgatar o que de único e profundamente amoroso, habita em todo o Feminino.
 

Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze, Moçambique em 1955. O seu romance Niketche ganhou o Prémio José Craveirinha em 2003, em 2014 foi agraciada pelo Estado Português com o Grau de Grande Oficial da Ordem Infante D. Henrique e em 2021 recebeu o mais prestigiado galardão das letras lusófonas, o Prémio Camões.

«Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçambicana a escrever um romance, mas eu afirmo: sou contadora de estórias e não romancista. Escrevo livros com muitas estórias, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte.».

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