Aldeia do Vale: A Escola onde se Muda a Forma como Vivemos e Olhamos para a Terra
Março 2024
Foi há quase 8 anos que a Aldeia do Vale se formou como escola.
Neste centro de pesquisa, a sustentabilidade, a permacultura, a agroecologia, a agricultura regenerativa e, até mesmo, o desenvolvimento pessoal, são os motores que, todos os anos, fazem arrancar formações capazes de mudar o mundo de cada pessoa que se atreve a fazê-las.
É “no meio do nada”, mas recheados de tudo que fomos até à Aldeia do Vale, também conhecida como Núcleo Ambiental da Associação Circuito Explosivo. Em Sintra, mais precisamente em Cheleiros, na fronteira com Mafra.
Sílvia, uma das suas fundadoras, foi quem nos recebeu, seguida pelos seus dois fiéis companheiros de quatro patas, que também fizeram questão de se juntar à conversa. Queríamos conhecer melhor a sua dona e eles pareciam pressenti-lo. “Desde pequenina que eu já sabia o que queria fazer, que era trabalhar com plantas. E só não sabia que era permacultura ou agroecologia. Então, segui o mundo da jardinagem, trabalhei dentro da jardinagem nos Parques de Sintra Monte da Lua. Depois de estar lá a trabalhar, fui estudar para a Austrália. Quando conheci a permacultura e a agroecologia percebi: ok, então existe algo. Acho que todos nós temos que encontrar uma tribo, não é? E eu encontrei a minha. Eu não quero salvar o mundo. É mais salvar pessoas e salvar o solo”, começa por partilhar Sílvia.
Agroecologia e Permacultura são temas que irão acompanhar todo o seu discurso. Por serem descobertas que fez desde cedo e, ainda, por se terem transformado também na base de todo este projeto. “Na realidade, a agroecologia traz-te uma conexão mais próxima com a natureza. Tu consegues entender a base científica toda por trás, para poderes cultivar comida de um modo regenerativo, já não é sustentável, é regenerativo. É regenerar solo, regenerar a terra e trazer as pessoas de volta. Existe aqui em Portugal uma aversão do voltar ao campo. E a agroecologia, a permacultura, traz-nos isto, mas de um modo muito mais romântico, porque envolve comunidade. Envolve viver junto”.
Ainda que o percurso de Sílvia tenha começado cedo, foi só em 2016 que surge na sua vida o projeto da Aldeia do Vale, depois “de eu e alguns dos membros do projeto termos feito voluntariado em vários projetos espalhados por Portugal, pela Europa. Fizemos vários voluntariados e decidimos fundar este projeto porque encontrámos muitas coisas, durante esses tempos, com as quais não concordávamos”, explica, falando em seguida do trabalho que aqui é feito: “Nós trabalhamos com pessoas, nós temos várias formações para a ONU, trabalhamos com várias Câmaras Municipais, etc.
Também para levar isto a pessoas que possam não ter dinheiro para pagar estas formações. Também fazemos formações continuadas, que é com os professores, trabalhamos diretamente com centros de formação, que trabalham diretamente com o Ministério da Educação, para dar formação a professores nas escolas, para levar este mindset, esta maneira de ver as coisas, às escolas e aos recintos escolares. Trazer de volta o uso dos espaços verdes nas escolas, por exemplo, é uma coisa que fazemos bastante. Mas para isso temos que trabalhar sempre em micro, nunca dá para ser em macro – que é o objetivo da permacultura também, trabalhar em microescala na minha comunidade, na minha bioregião, na minha localização”.
Para além das formações nas instalações da escola, em Sintra, o trabalho tem-se estendido a outros locais e públicos-alvo, como por exemplo as crianças. Formar professores é uma das ações da Aldeia do Vale e o objetivo é apenas um: formar quem forma, formando o futuro. “Optámos por trabalhar diretamente com os professores, através das formações continuadas que são obrigatórias. Desenhámos uma formação, de permacultura, diretamente para as escolas.
Para quê? Baseada no currículo escolar, para estar em contacto com professores e eles desenharem aulas de acordo com a permacultura. Porque a permacultura, este framework, pode ser levado para qualquer lado. Pode ser levado para a tua casa, então não tem só que ver com a horta. A permacultura é 80% de observação e 20% de trabalho significativo.
Então, é isso que nós levamos à escola. Porque as crianças são os futuros Presidentes da Câmara, Presidentes da República, Primeiros-Ministro, são os futuros médicos, são os futuros professores. Se eu não começo a fazer isso agora, e se os tratamos com esta indiferença toda, o que é que vai ser? Nós é que vamos ser os velhinhos. Então, é melhor que os incluas em tudo o que tu fazes agora para eles te poderem incluir, porque senão vai continuar a haver esta segregação”.
O que é certo é que em quase oito anos de trabalho, muito tem sido feito e, acima de tudo, muito positivo tem sido o feedback de quem se atreve a fazer parte desta mudança. “Temos pessoas de todos os estratos sociais. Tenho pessoas aqui que nunca tinham acampado na vida, imagina. Produtores de arroz, senhores doutores, agrónomos, e vêm para aqui ter assim uma experiência incrível. E o feedback é ótimo porque nós aqui trabalhámos ao nível de pessoas.
Uma das coisas que eu gosto em permacultura é que ninguém está acima de ninguém. Como nós percebemos como funciona a natureza, e que precisamos todos uns dos outros, então eu não tenho, nem ninguém tem aqui, a síndrome de pôr alguém acima de mim ou ninguém abaixo. Nós apresentamo-nos não como professores, nós somos só guias. Estamos todos ao mesmo nível e somos humildes o suficiente para dar lugar, isto é o palco, à outra pessoa. Se eu estou a falar de um tema, em aula, e tenho alguém que é dessa área, um cientista por exemplo, eu vou-lhe perguntar, vou pedir-lhe para desenvolver um pouco mais aquela matéria.
E as pessoas adoram. Não temos um tipo de público e logo aí…faz muita diferença. É incrível, tens o hippie do pé descalço ou o senhor doutor, e é incrível o choque. Porque depois aquelas pessoas ficam amigas”, confidencia.
Sílvia não quer mudar o mundo. Afirma-o várias vezes e di-lo com a convicção de que o mundo não precisa de ser ajudado. Assim, a mudança parte de nós e pode ser feita a partir de uma simples formação. Adquirir as ferramentas necessárias para que a diferença possa ser feita é tão simples como tomar essa pequena – grande – decisão.
“Se mesmo no teu quintalzinho vais ter práticas agroecológicas, isso vai fazer a diferença. Tudo aquilo que tu fazes aqui e agora tem impacto noutro sítio. Por isso, quando tu plantas uma árvore, não estás a plantar só para tu comeres, tu estás a plantar para todos nós. Quando não esgravatas o solo, quando tens práticas agrícolas regenerativas, é para todos, não é só para ti. Então é isto que nós também tentamos promover”.
Quanto ao futuro, a vontade é a de continuar a cultivar a diferença, o conhecimento, dando asas ao projeto para o testemunho possa ser passado: “Eu não me imagino aqui a viver para sempre”, é com convicção que o afirma e é com a mesma convicção que prossegue: “Eu quero ficar aqui, quero estar aqui, mas nós queremos preparar isto para ter postos de trabalho para a malta mais nova, para poderem ser eles a gerir isto. Nós queremos a geração mais jovem a trabalhar aqui, a nossa formação não passa apenas pelos professores.
Também somos mentores de teses, é interessante. Nós gostamos de estar envolvidos na parte académica, porque sabemos que é por aí que podemos mudar, porque nós não queremos sair do sistema. Nós queremos continuar no sistema, porque sabemos que é dentro do sistema que podemos fazer a diferença”.
Este é um projeto feito com amor e isso faz-se sentir a partir do momento em que pisamos a entrada da sala comum, local onde decorreu toda a conversa. Cada pedacinho de solo é pensado ao pormenor e nada é construído em vão. Um projeto feito por pessoas que abraçam o desafio de fazer a diferença, sem barreiras ou limites para quem quiser fazer parte dele.
Por isso, na hora de definir a Aldeia do Vale numa só palavra, Sílvia aceita o dilema e responde sem hesitar: “A nossa missão é agroecológica. Vai ter que ser essa a palavra, agroecologia. Porque na realidade o que se passa aqui é um projeto agro. Temos poucas infraestruturas, a base do projeto é solo e culturas agrícolas”. E pessoas. Porque se há coisa que percebemos depois desta partilha é que, de facto, nada se faz sozinho.
Fonte: Observador, Janeiro 2024