Coletivos Femininos - Espaços de Agência Potentes também no Meio Rural

Maio 2024


 

Coletivos Femininos – Espaços de Agência Potentes também no Mundo Rural
 

(Excerto de um artigo feito, no âmbito do convite para a participação na Conferência alusiva à semana da Mulher a 5 de Abril de 2024 – uma iniciativa da CTA, BCI e Projeto +Emprego. Tendo em conta que o evento se dedicou à Mulher Empreendedora, eu representei com enorme honra, um universo vasto e em simultâneo único, que aqui tenho de designar como “Mulheres Rurais”, consciente da necessidade de recorrer à linguagem simbólica e arquetípica, para que o(a)s leitore(a)s me acompanhem, apesar da generalização atroz, que abarca diferentes mosaicos identitários.)

 

A minha experiência profissional com Mulheres Rurais em Moçambique, centra-se sobretudo na Província de Gaza e de Cabo Delgado. E é recente: Tem 10 anos. A minha experiência de quase 30 anos, centra-se sobretudo no mundo corporativo, que inclui muita Indústria não-urbana, mas que naturalmente (ainda) concentra muito os seus volumes de investimento na 1ª e 2ª linha de gestão, que está maioritariamente no meio urbano.

Chegar ao meio rural para mim, no final dos meus 30 anos, exigiu um grande trabalho de desconstrução, que está longe de ter terminado. Dizem que até aos 40 nós ganhamos certezas, e que a partir dos 40, começamos a perdê-las (e a libertarmo-nos delas). 

Esta libertação, além de ampliar a minha perceção do mundo (e das fortes palmadas e rasgares internos), tem aprofundado a qualidade da minha relação comigo, com os outros e com os Lugares. E isto tem-me devolvido a um lugar de pertença em humildade. Um lugar de participação, em sistemas vivos, que estão em permanente mutação, impregnados de forças de ativação e de resistência, que em ciclos de entropia-sintropia sustêm (e são) a própria vida.

É a partir deste lugar de pertença em humildade, que trago a minha lente, inevitavelmente condicionada pela minha experiência.
 

Antes de mais, gostava de partilhar uma história, infelizmente comum, partilhada numa sessão recente: Uma jovem de uma aldeia na Província de Gaza (que não vou nominar), engravidou do Professor com 13 anos. Um conjunto de Pessoas, incluindo Professoras, denunciou a situação na esquadra. Os Pais da jovem dirigiram-se à esquadra, solicitando que a queixa fosse retirada, uma vez que o assunto deve ser resolvido por eles e não pela esquadra.

Nessa mesma sessão, outras situações de assédio por parte de Professores foram mencionadas.

Que forças de ativação e resistência estão presentes neste exemplo? 

Quais são os riscos de combater as forças de resistência?
 

Se olharmos para as Pessoas que denunciaram a situação, como atores que estão a ativar a “lei legal” e a proteção da jovem e para os Pais como atores que estão a resistir à “lei legal” e a tentar manter a “lei cultural” (que é sempre contextual), entendemos, sobretudo quem conhece o território, os riscos do combate às forças de resistência, sem um trabalho de ativação de agência, coletivo, coeso e contínuo.

A denúncia (o combate) é crucial e deve ser incentivada, mesmo que tantas vezes seja frustrada, quer pela “lei cultural” que resiste, quer pelo medo das represálias que essa mesma lei gera, sobretudo sobre as Mulheres.

Mas é sobretudo ao nível da ressignificação de crenças, que o trabalho de ativação de agência é feito, individualmente e coletivamente. E é sobretudo no “coletivamente”, que o mundo rural nos ensina. Sobretudo nos meios em que ainda existem conselhos de Anciãos, e que as decisões são tomadas em conjunto e em prol da comunidade e do lugar. Quem o conhece sabe que, esse poder coletivo, é imbatível e empodera o indivíduo, o coletivo e o lugar.
 

Um conselho de Anciãs – que infelizmente ainda é raro numa sociedade inequivocamente patriarcal – é um motor de ativação de agência potente, que legitima e empodera a Mulher, a Família, a Comunidade e o Lugar.

Mas o que faz um conselho de Anciãos num meio rural, quando uma jovem de 13 anos engravida de um Professor? 

Quando meninas de 10 anos, nos distritos do interior de Cabo Delgado, aparecem nos hospitais no momento do parto, acabando por vezes por morrer?

Quando as jovens deixam de estudar, em detrimento muitas vezes dos irmãos e para ajudar em casa, a cuidar, a trabalhar, para casar?

Quando as Mulheres são agredidas, não apenas pelos companheiros, mas também pelos familiares, professores, colegas e desconhecidos?

Quando as Mulheres perdem as suas terras, de que cuidam dedicada e fervorosamente, para os homens? (sabemos que a Lei de Terras (1997) já permite que a Terra fique em nome do Homem ou da Mulher, mas na prática, a Terra fica sobretudo em nome do Homem, e a Mulher não tem ainda suporte legal e familiar para reivindicar os seus direitos. O mesmo acontece com a usurpação de machambas e terras de camponesas para acordos estatais, corporativos ou privados, sem que as mesmas sejam envolvidas na decisão. Na análise de género da CARE após o Ciclone Idai em Moçambique em 2019, todas as mulheres entrevistadas afirmaram que não eram donas da terra em que trabalhavam. Se os seus maridos morressem, a terra passaria para a sua família - e enfrentariam o despejo (CARE, Avr 2019)). 

Em Moçambique 80% das Mulheres vive e/ou trabalha da terra. A violência contra a Mulher e/ou Terra são indissociáveis.

As respostas que poderia dar às questões anteriores, são baseadas nas experiências rurais por mim testemunhadas, direta ou indiretamente pelos testemunhos pessoais, sendo confidenciais e estando longe, bastante longe, do que esse conselho de anciãs potente que visiono, pode ser e gerar.
 

Mas todo este enquadramento, serviu apenas para lembrar que, muito antes de chegarmos a uma abordagem sobre a Mulher Empreendedora, é preciso gerar co-reflexão sobre os pilares que sustentam a sua realidade contextual, fortemente baseada em valores e crenças patriarcais. E quanto mais rural for o meio, maior pode ser a violação de direitos a que as Mulheres podem estar sujeitas.

Acrescentando que, a pandemia COVID-19 trouxe novos desafios para as Mulheres em todo o mundo e muitos países registaram um aumento na violência doméstica, resultante do confinamento e do aumento das tensões no lar. Em Moçambique, o confinamento, a pressão económica, a ansiedade, a perda de meios de subsistência e a interrupção no acesso aos serviços de saúde e saúde sexual e reprodutiva, serviços sociais e de proteção, como o Instituto Nacional de Acão Social (INAS), nas zonas de conflito e crise com pouca presença do Estado, colocaram um fardo adicional sobre as mulheres, e inclusive o UNFPA alertou para o aumento potencial da violência doméstica, da mutilação genital feminina, das uniões prematuras ou forçadas e do evidente enfraquecimento da proteção da Mulher.
 

Concretamente falando das Mulheres Empreendedoras do mundo rural, e na conferência inicialmente mencionada, destaquei 3 aspetos que considero importantes:

- Auto-conhecimento – Embora visto ainda como um luxo da mulher urbana ou do mundo corporativo, o auto-conhecimento também é fundamental para estas Mulheres. Compreender quem sou eu, quais são os meus dons, o que faço bem naturalmente, o que sei fazer, mas me deixa em esforço. Muito antes de chegar ao plano de negócio, é crucial que a Mulher se conheça, para tomar decisões conscientes sobre o tipo de projeto que quer iniciar/fazer parte, assim como fortalecer a sua auto-confiança, a sua motivação e resiliência para os desafios que vai encontrar no percurso. É comum, sobretudo em meios rurais, que as Mulheres se dediquem aos ofícios de sempre, que não sejam sequer equacionadas outras possilidades e que a falta de auto-confiança e auto-estima sejam um enorme bloqueio a essa experimentação e aventura de descoberta.
 

- Onde é que o meu dom se cruza com a necessidade da comunidade – Como colocar o meu dom ao serviço da minha comunidade, do meu lugar. Pensar o lugar em conjunto, ativar a inteligência coletiva do lugar, a partir de um paradigma regenerativo e coerente, tendo em conta os desafios emergentes e alinhados com o triple bottom line: People, Profit, Planet (ou o tão na moda ESG – Environmental, Social and Governance), desmistificando toda a campanha verde de propaganda que não é mais do que Business as Usual. 

É meu ponto de honra, servir os lugares com que me relaciono, procurando e incentivando modelos mais colaborativos. Creio que o empreendedorismo atual, acaba por fomentar o individualismo e competição e as Mulheres - e homens também claro, acabam muitas vezes por enfrentar os mesmos desafios sozinhas e desistir. Não temos espaço aqui, nem faz sentido, trazer toda a cadeia de negócio que também vive disto: do Empreendedorismo e do Verde (vulgo greenwash).
 

- Concretamente no que respeita ao financiamento – Creio que é preciso criar mais pontes entre as instituições e as Mulheres rurais. Muitas vezes o desafio começa na língua. A Mulher não fala Português e não tem acesso à informação. Em Moçambique falam-se 17 línguas diferentes e sabemos o quanto é importante, que a mulher se possa expressar e escutar na sua própria língua. Também é preciso desconstruir mitos sobre a banca/ instituições, muitas vezes baseadas em histórias que passam entre elas. Os programas de literacia financeira integrados em pontos focais como escolas, municípios, postos administrativos, são fundamentais. A presença nestes pontos focais, por si só e em meios rurais, é determinante para gerar confiança com os conselhos de anciãos e/ou Líderes locais, conhecer o público local, e quem são os seus empreendedores e empreendedoras locais. Que tipo de soluções existem para ele(a)s. Garantindo uma abordagem e explicação das mesmas em linguagem acessível, e depois um acompanhamento, que fortaleça a relação de confiança e acima de tudo, que mude as histórias contadas por elas, que perduram.
 

Por fim, e porque as pontes se constroem entre quem se foca nas semelhanças e não nas diferenças, e caso traga conforto a alguém, nós Mulheres não somos assim tão diferentes, quer rurais, quer urbanas, quer do sul quer do norte. No meu trabalho, nos meus grupos de formação, partilha, aprendizagem, encontro muito mais semelhanças do que diferenças. E infelizmente o abuso, a violência, a desigualdade, com contornos diferentes, são transversais e sistémicos. Assim o são também, o amor, o labor, a coragem, a determinação, a beleza e a potência que todas trazem dentro de si.

Do meu lado, e sempre a partir de uma profunda humildade, escuta e pertença, farei a minha parte para ativar esse poderoso e potente espaço de agência que são os coletivos femininos. Não contra nada, nem ninguém. Não é um movimento de combate, é um movimento pela Vida. Plural, feito por todas e por todos. As mulheres são quem faz a vida continuar, em casa, na escola, na terra, na guerra, na comunidade. Estamos longe de lhes dar o devido valor e poder. 
 

Para aquelas e aqueles que acharem que estou a exagerar, deixo aqui alguns dados representativos da desigualdade de género em Moçambique: (Fonte: Guião para facilitar formações sobre género, Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, com Assistência Técnica da GIZ-PE e Co.Result.eu, Março 2022)

  • 48% das mulheres casam-se com 18 anos de idade ou com uma idade inferior; ou seja, cerca de metade do total de mulheres Moçambicanas;
  • 20% das mulheres são mães com uma idade inferior a 16 anos;
  • Uma em cinco são mães com uma idade inferior a 16 anos (20%) e uma em duas Mulheres é mãe com uma idade inferior a 18 anos;
  • A prevalência de HIV é superior nas mulheres por causa da vulnerabilidade. 
  • 1 em cada 3 mulheres já sofreu de violência baseada no género;
  • As Mulheres são mais afetadas pela pobreza do que os homens, uma vez que a pressão social dá prioridade a outras atividades do que por exemplo à escolaridade da rapariga;
  • Muitas raparigas têm mais aproveitamento escolar do que rapazes, mas interrompem a escola precocemente;
  • Uma pessoa com menos formação formal tem menos acesso aos estudos/universidade, logo menos acesso ao emprego mais qualificado e menos influência no desenvolvimento da sociedade;
  • 80% dos funcionários (empregos formalizados) são homens. 


Susana Cravo

Maio 2024

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