Culturas Regenerativas - A Casa que a Modernidade Construiu

Outubro 2023


 

“Fechem os olhos. Imaginem uma colheita de milho, descascado. O que imaginaram parece-se com esta fotografia?”

A pergunta é de Vanessa Andreotti, Professora Universitária e Investigadora que integra o coletivo transnacional e interdisciplinar GTDF, e uma referência para mim na área da Educação para a Cidadania Global, que aliás já trouxe nos meus primeiros artigos.

Após a sua pergunta de partida, quase todos os públicos ficam surpresos ao ver uma foto de milho colorido, registada no Perú, pois todos imaginaram o milho amarelo.
 

Esta Professora usa a ideia do milho amarelo como analogia para a nossa (in)capacidade de imaginar milhos de cores diferentes. É também uma metáfora, da qual parte frequentemente para abordar a forma como o conhecimento é disseminado e produzido no ensino, contando uma história única de progresso, desenvolvimento e de evolução da humanidade.

Nesta história única, toda(o)s, de forma sistémica, vemos os “Países desenvolvidos” associados a inteligência, benevolência, merecimento, honestidade, limpeza, liderança, e os “Países sub-desenvolvidos”, associados a ignorância, violência, destruição, lixo, doenças e servidão.
 

Já abordei ao de leve a minha perspectiva sobre o estado da educação, como um dos sistemas mais coloniais por onde passei, quer como estudante, quer como trabalhadora.

Contudo, como estou a compilar e estruturar a aprendizagem experiencial da minha última década de vida, decidi fazer uma breve incursão pela oferta de ensino pós-graduado em Portugal, mesmo após o aviso de amigos próximos, sobre os riscos da aprovação de Teses contra-narrativa, em ambientes tradicionais. Passei pelos Estudos Africanos (desenvolvidos sobretudo por não-Africanos, por imensa coisa na área da inteligência e benevolência (Cooperação para o Desenvolvimento) e desisti quando encontrei um Mestrado em “História do Império Português”.

Focada no milho colorido, já escolhi, em consciência, uma outra forma para dar vida a tudo o que me corre na alma, nas veias e nas vísceras, que embora vá ter a minha assinatura, será um legado coletivo.
 

Voltando à história única e à forma como se produz conhecimento, Vanessa Andreotti considera que, os nossos atuais problemas globais, não estão relacionados com a falta de conhecimento, mas sim com um hábito de ser inerentemente violento da modernidade colonial.

Quatro negações estruturam este hábito de ser: (e vale a pena relembrá-los, apesar de já os ter trazido, pela sua pertinência quer neste artigo, quer perante tudo o que vivemos)

1 – A negação da violência sistémica e a cumplicidade no dano (o facto de que as nossas comodidades, garantias e prazeres são subsidiadas pela expropriação e exploração noutro(s) lugar(es);

2 – A negação dos limites do planeta (o facto do planeta não poder sustentar o crescimento e o consumo exponencial);

3 – A negação do enredamento (a nossa insistência em vermo-nos como separados uns dos outros e da terra (e sempre da equipa dos bons) em vez de enredados num metabolismo vivo mais amplo que é bio-inteligente; e

4 – A negação da profundidade e magnitude dos problemas que enfrentamos: as tendências:

a) para procurar esperança em soluções simplistas que nos façam sentir e parecer bem;

b) para nos afastarmos do trabalho difícil e doloroso (por exemplo para nos concentrarmos num “futuro melhor” como forma de escapar a uma realidade que é percebida como insuportável.

(Gesturing Toward Decolonial Futures, Vanessa Andreotti)
 

Outro aspeto fundamental que esta Professora traz, é o da mudança profunda que ocorreu na Educação nos últimos 30 anos. Desde 1993 com a abertura da Worl Wide Web, surgiram múltiplas plataformas, redes sociais e agora já na presença da Inteligência artificial, a grande missão da Educação deixa de ser o de “servir uma refeição” (conteúdos criteriosamente escolhidos) e embora exista um papel importante na curadoria da informação que se disponibiliza, a missão principal é a de, ajudar a processar a informação, a digerir o imenso, diverso, difuso (erróneo) e complexo manancial de informação que nos chega. Daí que a Autora nos sugira que, deixamos de servir a refeição, e passamos para uma Educação probiótica.
 

Desde sempre, as histórias e as metáforas, me acompanham em todos os processos de formação e facilitação de grupos. Não podemos adentrar aqui na riqueza que cada uma destas tem, mas podemos deixar 2 aspetos relevantes:

- O primeiro é a sua capacidade de agarrar (e/ou não afugentar) as pessoas, porque não é sobre elas, é sobre o milho, a coisa, os outros.

- O segundo é exatamente porque nos vemos retratados na história do milho, da coisa, dos outros.

Além da evidente capacidade de síntese, compreensão e integração (digestão).
 

A casa da modernidade que construímos, é mais uma metáfora utilizada por esta Autora, que me parece de crucial relevância ilustrar com a imagem original da mesma fonte (Gesturing Towards Decolonial Futures, Vanessa Andreotti), apesar de não estar legendada em Português.

Esta história tem 4 partes, devendo ser observadas da esquerda para a direita:



 

A primeira parte diz respeito a uma casa que excede os limites do planeta. Esta casa tem a sua fundação baseada na separação entre Humanos e Planeta, acredita que os humanos são superiores a todos os outros seres vivos e é a partir destas crenças, que se geram hierarquias entre espécies e culturas.

As paredes desta casa são o “estado-nação” que protege o capital e a propriedade, e a “razão universal” que ao contar uma história única, mata as outras histórias.

O telhado é o capital global, que hoje assenta no que a Autora designa por “capitalismo especulativo algorítmico”, tornando-se autónomo e anónimo, fazendo-nos perder o rasto da responsabilidade.
 

A segunda parte fala dos custos ocultos desta casa. Dentro da casa temos crescimento insustentável e consumo excessivo, que depende da expropriação de recursos, baseada em violência (que já abordei diversas vezes noutros artigos) e a eliminação de resíduos derivados deste consumo excessivo.

A terceira parte fala-nos dos “pisos” desta casa. Temos o “norte do norte” – Pessoas com elevado rendimento há muito tempo. Depois temos o “norte do sul” a meio da casa – Pessoas que querem chegar ao “norte do norte” através da mobilidade social. Em seguida temos na base da casa, o “sul do norte”- Pessoas que não têm acesso a mobilidade social, mas querem a segurança desta casa. E por fim temos o “sul do sul” - Pessoas que vivem fora desta casa, mas recebem “o esgoto” desta casa e que morrem ciclicamente na luta por uma forma diferente de existir. Esta terceira parte também nos convida a refletir sobre a falsa promessa de classe média universal, de que não só estamos cada vez mais distantes, mas que também, caso fosse possível e de acordo com os standards que se vive no norte, precisariamos de 4 planetas.

Na última parte da história temos a mudança climática, instabilidade económica, cancelamento de direitos, precariedade e populismo, a pressionar o telhado, crises económicas, sociais, políticas, ecológicas e de saúde dentro da casa, e o planeta minado de conflitos violentos e migrações em massa.
 

E as perguntas são:

Arranjamos esta casa? Expandimos, a casa? Construímos outra casa? Vivemos sem casa? Procuramos outros planetas?


Para esta Professora, há três tipos de respostas que podem ser dadas:

- A reforma leve – que prevê pequenos arranjos na casa, fechar as portas e seguir em frente, com o mesmo tipo de liderança, em prol de mais modernidade. As mesmas perguntas, as mesmas respostas.

- A reforma radical – queremos manter a casa, mas abri-la a mais pessoas, queremos outro tipo de liderança e fazer arranjos maiores. As mesmas perguntas, diferentes respostas.

- Para além da reforma – A casa e a modernidade não são uma opção, dada a violência que estas requerem e os limites do planeta. Aqui queremos perguntas diferentes e respostas diferentes.
 

Não se apresse em escolher a sua resposta. Permaneça, respire e deixe que as opções a(o) habitem. Provavelmente há diferentes vozes dentro de nós, que querem diferentes coisas. Identificar o que quer cada uma das nossas vozes internas já é um grande passo.

E termino com esta pergunta: Porque é que ainda é difícil encontrar “Educação em profundidade” (Vanessa Andreotti) nestes temas em Português, na tão diversa oferta académica?

Fonte: Revista Economia & Mercado, Artigo Edição Outubro 2023

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