Culturas Regenerativas - As Mulheres são como Árvores
Abril 2023
Passamos recentemente pelo Dia Internacional da Mulher e está a chegar o Dia da Mulher Moçambicana.
Começo por honrá(r)-las(nos) com uma frase da Clarissa Pinkola Estés, Poeta e Psicoanalista bem conhecida por quem se interessa pelo tema do Feminino, assim como o seu clássico “Mulheres que correm com os lobos”:
“Toda a mulher parece uma árvore. Nas camadas mais profundas de sua alma ela abriga raízes vitais que puxam a energia das profundezas para cima, para nutrir suas folhas, flores e frutos. Ninguém compreende de onde uma mulher retira tanta força, tanta esperança, tanta vida. Mesmo quando são cortadas, tolhidas, retalhadas de suas raízes ainda nascem brotos que vão trazer tudo de volta à vida outra vez. Elas têm um pacto com essa fonte misteriosa que é a Natureza.”
As Árvores são uma enorme fonte de inspiração para mim. Tanto no meu trabalho, como na minha vida pessoal, sempre me trouxeram insights, sustentação e sabedoria. E por isso, ressoa em mim totalmente o que disse Herman Hesse “Quem sabe como falar-lhes, ouvi-las, esse conhece a verdade”.
Sempre encontrei várias semelhanças entre as Mulheres e as Árvores (e não só), mas hoje vou centrar-me sobre elas. Vale a pena começar com uma citação de Andreas Weber, biólogo e filósofo alemão, do seu recente curso “Ecology of Love”:
"Ecossistemas são histórias de amor. As nossas formas mais profundas de nos relacionarmos e sentirmos, de tocarmos e de sermos tocados, são formas ecológicas de dar vida, de amarmos. Quando descobrimos a ecologia como a história de amor vibrante que realmente é, podemos desaprender os hábitos violentos da nossa civilização.”.
Weber defende que precisamos de deixar cair a visão neo-darwinista de que a sobrevivência e a reprodução são os únicos imperativos evolutivos. Este reducionismo científico perde uma história rica sobre a reciprocidade, a beleza e até o amor. “Amar signifca estar plenamente vivo.” (A. Weber)
Em “The Biology of Wonder” Weber revê o enigma fundamental da vida, desafiando-nos a compreender o sentimento como o princípio de toda a vida, argumentando que todos os seres vivos, como os humanos, não são máquinas biológicas, mas agentes vivos e criativos, alimentados pelo significado e pela expressão. Sentimentos e emoções, estão longe de serem supérfluos para o estudo dos organismos, são antes, o próprio fundamento da vida.
Para Weber a cisão entre nós e o mundo natural é indiscutívelmente a causa raíz da maior parte das catástrofes ambientais que se desenrolam à nossa volta. Até que nos conformemos com as profundezas da nossa alienação, não conseguiremos compreender que o que acontece à natureza, também nos acontece a nós.
Vale a pena trazer aqui também um excerto da Sophie Strand, uma jovem que com poesia dá voz ao mundo mais que humano, que afirma estar mais interessada no “ensoilment” do que no “ensoulment”, e que nos faz reflectir sobre a nossa prepotência e arrogância, pelo lugar antropocêntrico que teimamos em ocupar:
”Vivemos numa cultura que preza o eu atomizado, impondo (...) a cura aos indivíduos quando a doença e o desconforto (...)(sinalizam) os sistemas de opressão dentro dos quais estamos presos como moscas na teia de uma aranha. Pensamos que devemos curar-nos individualmente e ser bem sucedidos individualmente.
Somos também ensinados, que sentimos e experienciamos individualmente, através do contacto directo com a nossa corporalidade delineada pela pele. Este fenómeno é conhecido como "healthism" e é definido como a preocupação com a saúde pessoal e a responsabilidade pessoal pela saúde como sendo a principal, muitas vezes em detrimento da compreensão de que a saúde de uma pessoa está íntimamente ligada (e representa) toda uma população (humana e mais que humana). A doença, o trauma e a dor não pertencem a um indivíduo. São uma teia que inclui alguém. Da mesma forma, a cura não é um objecto ou realização que pertença a uma pessoa. A investigação sobre cognição incorporada e ecologia, microbiologia e somática oferece um vislumbre de algo mais propagável (e cheio de “fugas”/vazamento) do que a ideia moderna de um self auto preservado.”
A importância da relação, do padrão, da reciprocidade, da experiência, em vez do foco no(s) indivíduo e no objecto(s), que Gregory Bateson entre outros já nos trazia e a porosidade de todos os elementos do sistema, abrem-nos a percepção para a complexidade intrincada do Lugar e da sua história. E o Desenvolvimento regenerativo é sobre isso mesmo: Ajuda-nos a compreender o Lugar como um sistema vivo, em permanente evolução. A partir desta compreensão, ganhamos também a percepção (e humildade) sobre qual é o nosso papel no Lugar ou no sistema, para que se possa caminhar em direcção à realização do melhor potencial possível.
Por outro lado, este preconceito também neo-darwinista de que a evolução é uma seta sempre em frente, não corrresponde à verdade. A evolução pode ser bifurcação (por aqui ou por ali), mas também pode ser dispersão e fusão (por aqui e por ali, isto e aquilo). De forma súbita, imprevisível, por vezes caótica, a troca, a reciprocidade acontecem, dando origem a um novo ser, a nova vida, a nova experiência.
O líquen, as algas, as bactérias, os fungos são provas disso. Assim o são as árvores também. E as Mulheres.
Além da mais evidente e bela relação de troca, através do oxigénio que respiramos e da sua capacidade de absorção do dióxido de carbono que expiramos, transformando o que para nós é tóxico, novamente em solo fértil, há já várias investigações acessíveis em diferentes contextos, sobre a forma como as Árvores comunicam umas com as outras e se cuidam, não só entre Ancestres (Mães) e pequenas crias, mas também entre Famílias vastamente conectadas pelas suas raízes, que têm uma linguagem própria e imperceptível a nós, mas altamente poderosa e que espelha muito do que é o Feminino e a própria vida. São claramente um exemplo de cooperação – Árvores da mesma Família não só não competem entre si, como se avisam do perigo percebido e ajudam vizinhas próximas, enviando água e outros nutrientes através do micélio. Além de estabelecerem relações significativas, possuem memória e conhecem sensações, registando-as na forma como os seus anéis internos (ou impressão digital) se tecem, na forma como abrem os seus ramos (ou braços) à vida e na fertilidade que oferecem ao ecossistema . Gostam de estar juntas, criando Florestas lindas e vibrantes, nutrem e sustentam a vida. São guardiãs e como ja dizia o provérbio “não negam sombra nem ao lenhador”.
Todas elas – as Árvores e as Mulheres - conhecem a ciclidade. Sabem o que é viver as diferentes estações. E do quão importante é poder contar com o apoio da rede de suporte da Floresta, quer nos momentos mais difíceis, quer nos momentos de pura partilha, convivência e celebração.
Conhecem a dor e o êxtase profundos, são capazes de experienciar emoções aparentemente opostas em simultâneo e trazem dentro de si uma diversidade de potenciais e papéis. Esta ciclicidade e complexidade da Árvore e da Mulher nem sempre é entendida, e principalmente respeitada no mundo bruto, competitivo e masculinizado em que vivemos. Entenda-se que, esse mundo masculinizado é alimentado por Homens e Mulheres, pelo pensamento hiper-racional, pelo desiquilíbrio profundo entre Feminino e Masculino, que abordei no penúltimo artigo.
Como diz a Joan Halifax (adaptando a ideia de Thich Nhat Hanh “Somos flores de Lótus em mares de fogo”.
E por trás desta campanha massiva do empoderamento da Mulher e da evidente importância da Mulher na economia, anda também um extractivismo, um nível de exigência, que nem sempre é compatível com a nossa natureza e sobretudo ciclicidade. Na ambição de querermos chegar a todos os Lugares, com os filhos ao colo, o tacho ao lume e a cesta (ou livros) na cabeça, esgotamos tempo e vitalidade, que poderíamos multiplicar com mais equilíbrio, ao serviço da vida, para todo o ecossistema.
Vejo um pouco de tudo. Mas vou evitar os assuntos graves e os clichés. Vejo Mulheres a explorar Mulheres, muitas vezes nos seus próprios Lugares. Vejo Mulheres a querer empoderar Mulheres ao final da tarde, mesmo sabendo que elas acordaram às 5h. Vejo Mulheres a preparar Festas de Família e “do bem” à custa do esforço indigno de outras Mulheres. Vejo Homens e Mulheres a continuar a desvalorizar o tempo, dedicação e preciosidade do trabalho não pago e não visto, embora imprescindível. Vejo organizações “do bem” a explorar e a adoecer os seus solos e corpos. Vejo Mulheres a fazer rituais de Sagrado Feminino e a não cuidar da Terra e do Planeta. E este cliché é importante deixar: Vejo Mulheres a cuidar de toda(o)s e de tudo, menos delas próprias. Mas para deixar o cliché, tenho de acrescentar imediatamente a seguir: Vejo-nos a todas e a todos a perpetuar a colonização das mentes, dos corpos e dos solos, com o que achamos que é. E como se lia em cartazes recentes: “O lugar da Mulher, é onde ela quiser”.
Mas também vejo, e cada vez mais, Mulheres a apoiar outras Mulheres, fora do seu circuito de Amigas/Família, de forma discreta, sem propaganda, com intenções genuínas e atentas ao que verdadeiramente elas precisam e valorizam.
Vejo cada vez mais Homens a apoiar genuínamente e da forma certa as Mulheres.
Vejo cada vez mais consciência sobre o que é o Feminino e o Masculino e a importância do equilíbrio entre eles, em todas e todos nós, na forma como nos relacionamos com a vida.
Vejo cada vez mais Florestas vibrantes, vitais para reflorestar a alma, a vida e o mundo.
E ainda bem, pois por mais que nos seja difícil admitir, são sobretudo as Mulheres, que garantem que a vida continua – em casa, na escola, na terra, na guerra e nos Lugares da vida económica, social, cultural e política que ela ocupa. Estamos longe de lhes dar o devido valor e poder, mas para lá caminhamos, assim espero.
As Mulheres são como Árvores e “Árvores são poemas que a terra escreve para o céu.” Kahlil Gibran.
Revista Economia & Mercado, Edição de Março
Foto: Jovens do Projeto +Emprego no âmbito da celebração do Dia da Mulher Moçambicana em parceria com a ONGD Kutsaca