Culturas Regenerativas – Compaixão: Peito Suave e Costas Fortes

Janeiro 2024


 

Culturas Regenerativas – Compaixão: Peito Suave e Costas Fortes
 

Embora seja meu querido e fiel companheiro de vida, deixei o tema da Compaixão para o meu artigo final, que coincide com o início do ano, e que espero, possa ser mais uma semente para cumprir o propósito desta rúbrica, que nos acompanhou ao longo de 14 meses: regenerar o principal - a nossa forma de pensar.

A frase original que guia a minha inspiração para este artigo “Strong Back, Soft Front” é da Joan Halifax, uma Mulher extraordinária, profundamente inspiradora e ícone da verdadeira compaixão para mim.
 

Começamos por esclarecer alguns mitos sobre a compaixão, que ainda está muito associada, a pena, piedade, caridade, relação vertical – superior-inferior, e faço-o com o suporte do Programa “Compaixão sem Fronteiras” gentilmente oferecido em Português pela Margarida Cardoso nos últimos 3 meses, com base no conhecido Programa CIT – Compassionate Integrity Training, presente em mais de 30 Países e em parceria com a UNESCO, MGIEP (Mahatma Gandhi Institute of Education for Peace and Sustainable Development), e diferentes Universidades e Escolas, integrando também os últimos desenvolvimentos no campo das neurociências, psicologia, cuidados informados de trauma, estudos sobre Paz e conflitos e ciência contemplativa.
 

Integridade Compassiva é “a habilidade de viver de acordo com os seus valores próprios, a partir do reconhecimento de uma humanidade comum e de uma orientação fundamental para a gentileza e a reciprocidade.” Não é íntegro se promove o dano em relação a si próprio, aos outros e ao mundo. Por outro lado, “cultivar Integridade Compassiva na vida pessoal e na comunidade tem impacto direto no crescimento individual e coletivo.”
 

É fundamental percorrer, praticar e integrar os três territórios: Relacionar-se consigo, Relacionar-se com os outros, Relacionar-se com sistemas.
 

Centrar na Humanidade comum: Todos procuramos a felicidade e evitamos o sofrimento. Mesmo que isto nos pareça em determinados momentos difícil de aceitar ou entender.
 

Apreciar o Valor de cada Vida, sem expectativas, premissas utilitárias e/ou transacionais.
 

E assumir duas mudanças fundamentais: (caso elas não nos habitem já)
 

1 – A nossa tendência básica para a bondade – Na qual me revejo completamente (apesar das diferentes correntes de pensamento que nos dividem entre “naturalmente bons” e/ou “naturalmente maus/frios/egoístas”), e que é suportada pelos recentes estudos nesta matéria: “os humanos são, sobretudo, motivados pela necessidade de receber e expressar compaixão, cuidados e bondade (...) conexão e cuidado”. Aliás, “nenhuma espécie de mamíferos ou de pássaros poderá desenvolver-se totalmente se não receber cuidados sob a forma de toque ou de contato por parte de outro indivíduo da espécie.” O lado sombra desta necessidade primária de pertença e conexão, assim como do forte medo de rejeição social, leva-nos a comportarmo-nos em conformidade com o nosso grupo e contexto. E isto levanta outra questão fundamental, que muito bem a Madre Teresa de Calcutá expressava na sua célebre frase “The Problem with the world is that we draw our family circle too small”. A nossa tendência para a bondade é para com quem vemos como os nossos semelhantes, que vemos como mais merecedores do nosso amor, empatia, compaixão. Excluindo, ignorando ou até prejudicando quem está fora do nosso círculo.
 

2 – A Neuroplasticidade e Neurogénese - Nós temos a capacidade de aumentar a bondade e a compaixão. “Os estudos sugerem que cultivar a compaixão e a conexão melhora o sistema imunitário e reduz o stresse psicossocial. Tudo aponta para que a necessidade de compaixão e de cuidados esteja incorporada no nosso corpo e que, ao sabermos isso, podemos usar este conhecimento em nosso benefício.” (Curso Compaixão sem Fronteiras, Margarida Cardoso).

Adicionalmente, estudos recentes partilhados pela UNESCO demonstram que, a aparente apatia ou indiferença das pessoas a conflitos e/ou situações graves que o mundo enfrenta, se deve, à falta de clareza e discernimento sobre como podemos ajudar.
 

E a compaixão é sobre isto: A prontidão para ajudar, com discernimento e habilidade. Para fazer o que é preciso, para ser útil, para aliviar o sofrimento, para fazer o que está certo, mesmo - e isto é fundamental - sem saber qual vai ser o resultado. A Joan Halifax usa uma frase que me toca particularmente: “Se nós tivermos 1 pico no pé, de forma natural, levamos a nossa mão a tirar o pico do pé. Da mesma forma, enquanto organismo maior, a compaixão é sobre, de forma natural, tirar os picos dos pés que doem.”
 

E as mãos que tiram os picos dos pés, por mais que nos seja difícil de admitir, são femininas.

Nos corredores de hospitais, prisões, campos de guerra, e outros cenários difíceis, esta e outras Autoras e Autores, partilham muitos exemplos desta presença feminina, que no meio do caos e violência, escutam, limpam as lágrimas, dão a mão, cuidam, nutrem, sustentam e ainda nos confortam com um sorriso, embalam com uma canção ou uma história. As mãos que cuidam e o peito suave são sobretudo das Mulheres.
 

V (Eve Ensler), a conhecida dramaturga feminista criadora dos Monólogos da Vagina, vítima de abuso pelo seu Pai durante anos e que trabalha com Mulheres em todo o mundo, fala de “uma célula de menina” em todos nós – Mulheres e Homens, que aprendemos a suprimir porque a vemos como frágil e perigosa. Esta “célula de menina” manifesta-se como “compaixão, empatia, paixão, intuição, vulnerabilidade” – o peito suave portanto.

No mundo bruto em que vivemos, ser forte significa “não ser menina”.

“Ser Menina” é algo tão poderoso, que o tentamos aniquilar. E é exatamente por isso que chegamos aqui. Houvera mais “meninas” no poder, e seguramente não enfrentaríamos tantos conflitos, desordem e devastação.
 

Entre as várias histórias tocantes de superação de adversidades e violência revoltantes, V (Eve Ensler) partilha muitas vezes, exemplos da força impressionante que é “ser uma menina”: das Mulheres que decidem viver, perdoar, ajudar e até amar, os seus corpos mutilados, os seus bébés filhos de violações atrozes, os seus Pais (e Mães), companheiros que as venderam, abandonaram, violaram, humilharam e maltrataram. V (Eve Ensler) traz outro aspecto fundamental de “ser menina”: Numa altura em que pensava já ter vivido e visto tanto, a sua vivência marcante na República Democrática do Congo, na conhecida City of Joy que acolhe Mulheres vítimas de extrema violência, fê-la ir ainda mais fundo. Foi com esta “perfuração do seu coração”, que fortaleceu a coragem e a força para ajudar.
 

É que viver com peito suave, e coração aberto, é para quem se atreve a “ser menina”. É preciso muita coragem para manter a nossa sensibilidade, amor e compaixão. “We are Lotus Flowers in seas of fire” (J.Halifax adaptado do original de Thich Nhat Hanh). E só se torna realmente poderoso, quando deixa de ser sobre “Mim” (Indivíduo/núcleo íntimo), e passa a ser sobre “Nós” (Coletivo/a Causa que me toca).
 

A Causa, o discernimento e a prática disciplinada e integrada do caminho dos 3 Territórios – Relacionar-se consigo, com os outros e com sistemas, é o que nos faz ter o Strong Back. Sem costas fortes, não há compaixão que resista. O sofrimento empático ou mesmo o burnout, acabam por visitar-nos se não nos cuidamos e pedimos ajuda quando é necessário, se não nos protegemos dos vampiros que hão-de sempre visitar-nos e se não colocamos limites e pontos finais em alguns momentos. Há outra coisa fundamental para o Strong Back: a rede, a comunidade. Mas para quem se aventura em territórios desafiantes, sabe que há momentos em que a rede é quase nula, e é precisa muita resiliência interna. Portanto a causa é a bússola, a prática disciplinada é o bastão de poder.
 

Não seria justo, não sublinhar neste artigo duas coisas:

1 - Muitos dos exemplos marcantes por mim vividos e testemunhados, não podem ser partilhados por questões de ética, mas eles encontram-se sobretudo na(o)s invisíveis, nas pessoas comuns, sem qualquer tipo de voz e palco. Contudo a violência, assume muitas formas e atravessa todos os mundos, status, meios, muitas vezes aparentemente improváveis. E por isso, a compaixão devia ser tema obrigatório nas escolas, em casa, desde cedo. Cabe-nos a toda(o)s resgatar as “nossas células de menina” em nós e em quem nos rodeia.
 

2 - Felizmente há muitas “células de meninas” em Homens. E deixo aqui a minha homenagem a alguns deles:

O primeiro é o Dr Denis Mukwege, Co-fundador com V(Eve Ensler) da City of Joy – Centro que acolhe estas Mulheres sobreviventes de violência extrema, em Bukavu, República Democrática do Congo. Responsável por centenas de resgates e operações, muitas vezes sob enorme risco e ameaça de morte, este notável médico ginecologista, Nobel da Paz, é uma referência Mundial.
 

O segundo é o conhecido e notável Dr. Igor Vaz. O especialista em Urologia e Cirurgia Geral, foi durante alguns anos o único urologista Moçambicano a trabalhar no País, tendo também enfrentado situações duras, de guerra e de fome, mas mantendo-se fiel por amor à causa e com um histórico único de sucesso no grave problema da fístula obstétrica que acomete tantas Mulheres.
 

O terceiro é Nicholas Winton, o Britânico que conseguiu ajudar 669 crianças a fugir da Checoslováquia antes da invasão Nazi. Joan Halifax refere muitas vezes o seu exemplo, quando nos fala sobre a compaixão genuína, sem contrapartidas, sem expectativas. A que nos move, porque é a coisa certa a fazer (mesmo que fiquemos prejudicados). Nicholas viveu até aos 106 anos, o que prova que a bondade e a compaixão também são exemplo de longevidade. Só 60 anos após o seu feito, foi surpreendido pela BBC num auditório repleto de adultos que ele próprio tinha ajudado a sobreviver. Um vídeo que por mais vezes que veja, sempre me emociona.
 

E por fim, a minha homenagem ao Ruy Santos, Fundador da Plataforma Makobo e do projeto Kaya, que na história recente de Moçambique, é um exemplo de Compaixão e de Liderança servidora, por tudo o que ele cria, mobiliza e representa. Já reconhecido pela Rainha Isabel II como “Point of Light” da Commonwealth e recentemente na “Powerlist 100 BANTUMEN – Personalidades negras mais influentes da Lusofonia”.
 

Todas estas histórias partilhadas, e muitas das não partilhadas, são fonte de inspiração e coragem no meu percurso de Aprendiz-Peregrina.

Por fim, arrisco a “ser menina” e convido-vos a deixar que este Poema belíssimo possa penetrar no vosso peito suave:
 

“Kindness (de Naomi Shihab Nye)

Antes de conheceres a bondade como a coisa mais profunda dentro de ti

Deves conhecer a tristeza como a outra coisa mais profunda

Tens que acordar com tristeza

Falar com ela até que a tua voz alcance o fio de todas as dores

E veja o tamanho do tecido

Então aí, só a bondade faz sentido

É só a bondade que te faz pôr os sapatos

Te lança todas as manhãs para enviar cartas e comprar pão

É só a bondade que levanta a sua cabeça

Acima da multidão do mundo para dizer

Sou eu quem estavas à procura

E então ela vai contigo para todos os lugares

Como uma sombra, ou um amigo…”

(Inspiração-cortesia do Curso Compaixão sem Fronteiras, Margarida Cardoso)


Fonte: Revista Economia & Mercado, Artigo Janeiro de 2024

Retrato: Desenhado por Nádia Amaro, Cabo Delgado

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