Culturas Regenerativas - Da Separação à Reconexão

Fevereiro de 2023
 

Este é, não tenho dúvidas, um dos artigos mais desafiantes desta jornada.

Em primeiro lugar pelo seu título, que produzirá no pensamento reducionista e /ou masculinizado, um julgamento automático. Ainda assim, intencionalmente, optei por manter o título, pois não há palavras mais adequadas, para um tema que é basilar e raíz de tudo o que vivemos.

Em segundo lugar, porque é uma mulher que o escreve, e por isso, embora tenha maior probabilidade de ser aceite e menos julgada, do que um homem, muitos e muitas podem consciente ou inconscientemente, ceder à tendência de o categorizar como um assunto da "bondade feminina" ou de "fazer o bem" e de pouca relevância para uma Revista sobre Economia e Mercado. E é também por isso, que ainda há pouca(o)s Líderes Regenerativos.

A minha principal inspiração bibliográfica para este artigo, é a Liderança Regenerativa – O ADN das Organizações do Século XXI que dão primazia à vida, que já está disponível em Português desde Abril de 2022, pelo fantástico, consistente e sustentado resumo que os autores Laura storm e Giles Hutchins conseguem fazer, da jornada da separação (Pág.17).
 

Embora os Seres Humanos tenham começado a sair da África Subsariana, para várias partes do globo, há cerca de 100 mil anos, vamos saltar para os últimos 10 mil anos, em que os registos e evidências de diversos investigadores contribuem para demonstrar que, neste período as sociedades eram pacíficas, igualitárias, com forte integração e vínculo com a natureza e com um traço comum entre as culturas antigas de todo o mundo:

Uma comunhão masculino-feminino sagrada, fruto desta visão de Deus Céu e Deusa Terra, que mantinha um profundo sentido de reverência à vida.

Com a mudança climática de há 10 mil anos (queda entre os 10 e 4 graus) a que a Humanidade sobreviveu, a mudança social e de percepção de identidade – em que passamos por razões de sobrevivência - a ver-nos não como parte, mas separados da natureza, e o advento da revolução agrícola, trouxeram com eles “o aumento do patriarcado, a crescente estratificação e divisão da sociedade, a priorização de Deus no Céu sobre a Deusa na Terra, a militarização generalizada, a mecanização de armas e ferramentas para exploração e dominação de outros Seres Humanos e da natureza, o uso generalizado da moeda, o advento da palavra escrita, o direito de posse da terra e muitas outras inovações culturais.” Mantendo-se ainda assim, apesar delas, um profundo respeito e relação entre natureza e vida humana até há cerca de 500 anos atrás.
 

Seguem-se a pequena idade do gelo, o dogma difundido pelo Cristianismo de Deus separado e acima de tudo, e até uma condenação da anterior simbiose com a natureza, manifestada sobretudo pelas Mulheres, que além da forte conexão com a natureza, utilizavam as suas propriedades medicinais. É com a Idade Média que Deus e o Homem se divorciaram da Natureza. E embora nos possa parecer chocante ler excertos de Bacon (1603) sobre “como a natureza deve ser feita escrava do homem (...) espremida, moldada e dominada”, esta visão distorcida e obscura, não está apenas patente nas práticas intensivas e destrutivas de exploração da natureza para a silvicultura, pesca, agricultura e exploração mineira. Ela está patente na forma como ainda hoje vemos a vida com a lente da luta pela sobrevivência, a competição do dog-eat-dog e “a sobrevivência do mais apto” de Darwin, que ainda nos fazem pensar que esta é a nossa natureza, e não evidenciam as inúmeras formas de relação, parceria, cooperação e redes presentes na natureza e claro em nós como parte dela.

Este desequilíbrio profundo, originado pelo divórcio (e dominação) entre homem-natureza, masculino-feminino, mente-matéria, interno-externo, assente no reducionismo racional-analítico e mecanicista que ainda hoje dita as regras na vida económica, social, cultural, e política é a raíz de toda a instabilidade e degeneração a que assistimos.

E se quisermos realmente garantir que a vida continue, é bom que nos foquemos nas nossas originais, inatas e naturais competências de cooperação e parceria, garantindo que o caminho de volta à harmonização, permite que a inteligência soberana da vida faça o seu trabalho de regeneração. Este é o caminho da reconexão.
 

É também desta visão de separação, que emerge o foco no problem-solving, que abordei no último artigo, e que perpetua a categorização-resolução de problemas isolados. A ambição desmedida de “resolver" a desigualdade de género, fabricando Programas para Mulheres em modo automático, é um dos exemplos que melhor aqui se enquadra, e que não obstante a relevância de muitos deles, ignora o cerne da questão: a distorção e desequilíbrio entre Feminino e Masculino.

Todos os Seres Humanos têm características femininas e masculinas, no entanto, a história mostra-nos que, as qualidades masculinas foram sendo percebidas como superiores e mais importantes do que as femininas.

O desconhecimento e preconceito em relação ao conceito de género, ainda toca a todos os mundos, do sul ao norte, da classe baixa e analfabeta à classe alta e sobreeducada.

E o boom de iniciativas que visa contribuir para a tão desejada igualdade de género, não só ignora questões basilares, como gera muitas vezes fragmentação sectorial e geográfica, entre classes, indústrias, regiões, inequívocamente entre o mundo urbano e o mundo rural, desenvolvido e sub-desenvolvido, global e tribal, moderno e ancestral, mas também e não menos importante, entre Mulheres e Homens.
 

O que nos falta, isso sim, é atenuar a forma hiper racional, competitiva, masculinizada e orientada para a acção e conquista, e abrirmo-nos a uma forma mais feminina e orientada para a cooperação, conectada com o coração, intuição, criatividade e em consonância e profundo respeito com a ciclicidade da vida.

Também o nosso anseio por compreender, sistematizar, controlar, extrair, colocando-nos náo só separados do exterior, mas como donos e dominadores do exterior, afastou-nos do centro da vida, das nossas capacidades empáticas, sensoriais e intuitivas, que ainda hoje são muitas vezes vistas como irrelevantes, prejudiciais ou mesmo ridicularizadas.

Há um claro desequilíbrio (e domínio) das qualidades do hemisfério cerebral esquerdo (linear, causal, foco nas partes, polarização, uns contra os outros), sobre as qualidades do hemisfério direito (sistémico, relacional, foco no todo, nas relações e nos padrões, criatividade).  Contudo, a vasta investigação sobretudo dos neurocientistas sobre este tema, mostram que esta tendência, limita a nossa capacidade para lidar com a complexidade dos tempos que vivemos. É sobretudo com as qualidades do hemisfério direito que podemos lidar com os desafios dos sistemas vivos, emergentes e complexos.
 

Algumas das tentativas de trazer esta consciência, mais evidentes a partir do final do século passado, descolaram-se da racionalidade e competitividade obsoleta, mas caíram numa abordagem espiritualizada, pouco consistente e moralista, que obviamente não gera o discernimento que é necessário.

Já as abordagens organizacionais, que entretanto se tornaram comerciais, parciais, e muitas vezes pouco éticas, estão ainda longe de fazer um trabalho sistémico profundo que conduza à regeneração.

O caminho da reconexão, da reintegração e da regeneração é feito por todos e por todas nós. Cada um na sua esfera familiar, organizacional, comunitária. Em parceria, em rede. Todos podemos activar o nosso pensamento sistémico, o nosso estado de agência, a nossa sustentabilidade interna e externa, a nossa relação simbiótica com a vida. E este é o caminho de reconexão com a inteligência inata da vida.


Revista Economia & Mercado Moçambique, Edição de Janeiro

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