Deusas Tóxicas

Abril
Deusas Tóxicas
Se os Deuses do Lugar são expressões míticas das forças ecológicas de uma paisagem viva — plenas de ciclos, biodiversidade e relações complexas e invisíveis — então os corpos humanos, especialmente os corpos menstruantes e ovulantes, são também paisagens sensíveis pertencentes e atravessadas por essas entidades. Quando os territórios são profundamente alterados — cimentados, minados, irrigados à força ou intoxicados — os próprios deuses são desfigurados. Assim também com os corpos: transformações químicas, hormonais e invisíveis desenham uma nova mitologia corporal — onde a dor crónica, a infertilidade, a fadiga e a intoxicação se tornam sintomas de uma paisagem interior devastada.
A endocrinologista, Dr.ª Carme Valls-Llobet, alerta para esta camada esquecida da crise: as mulheres acumulam mais toxinas ambientais devido à maior proporção de tecido adiposo e à vulnerabilidade dos seus ciclos hormonais, e são afetadas por substâncias que a medicina tradicional estuda raramente com lentes de género. Os “deuses Frankenstein” da modernidade — herdeiros de intervenções coloniais e industriais — não vivem apenas nas fábricas ou máquinas. Habitam nos disruptores endócrinos, nos pesticidas invisíveis, nos plásticos que respiramos e absorvemos todos os dias em todo o lado. Cada substância tóxica que o solo recebe, os corpos assimilam. E como sublinha Valls-Llobet, a ciência dominante — construída sobre a abstração de um corpo masculino branco e neutro — continua a ignorar esses impactos, perpetuando narrativas tóxicas que mascaram desequilíbrios como progresso.
A mitologia viva e crua do presente desperta deuses e monstros antigos nos lugares esventrados e envenenados do agora. Ao aprisionar e amordaçar a mitologia ecológica, não apenas desfiguramos os deuses da paisagem — como também fabricamos novas entidades híbridas: deuses de plástico, quimeras de exaustão, divindades de infertilidade e monstros de colonização celular. Assumimos que os tempos são outros, mas os limiares continuam habitados. São os deuses do caos e das sombras, entidades esquecidas que guardam o espaço negativo daquilo que foi excluído do ciclo da vida — e que agora, emergem entre o cimento, os rios contaminados, a medicação da fertilidade e a terapêutica da dor. Reencantar a saúde é reconhecer estas entidades feridas, nos corpos e nos territórios, e invocar outras narrativas — que saibam escutar o corpo como território político, poético e mitológico em ciclos orgânicos.
Fonte: Artigo de Sofia Batalha em https://serpentedalua.com/deusas-toxicas/