Falar da Morte é trazer-nos à Vida e Lutar por aquilo que é Viver Bem
Outubro 2023
Ana Catarina Infante, fundadora da Comunidade Doulas do Fim da Vida, foi convidada do Vozes ao Minuto em Setembro de 2023.
A figura da doula é comumente associada ao nascimento, mas também as há para o fim da vida. Prova disso é Ana Catarina Infante, enfermeira e fundadora da Comunidade Doulas do Fim da Vida que, em 2019, introduziu o primeiro curso de formação na área em Portugal, em parceria com a Associação pela Dignidade na Vida e na Morte (AMARA).
Considerando que a humanidade tem "um grande trauma" coletivo, nomeadamente "o medo da morte", a profissional de saúde salientou, em conversa com o Notícias ao Minuto, que a figura da doula atua como uma presença tranquilizadora e conhecedora do fim da vida, cujos sinais são, ao contrário dos do nascimento, desconhecidos pela maioria da população.
Na verdade, numa sociedade pautada pela fuga ao sofrimento e pelo recurso à positividade que, em demasia, alcança terrenos tóxicos, a doula, que "caminha ao lado" da pessoa em fim de vida e dos seus entes queridos, traz "um novo olhar e uma nova perceção" daquilo que significa morrer. Isto porque, na ótica da enfermeira, continua a haver beleza, tranquilidade e amorosidade na morte, que é, muitas vezes, "uma oportunidade de despertar". A única certeza, essa, é que "todos estamos a envelhecer, todos vamos morrer, e falar da morte é trazer-nos à vida".
Qual o propósito e as funções de uma doula do fim da vida?
A formação de doula é um trabalho de desenvolvimento pessoal. É um resgate de si próprio. Ou seja, na sociedade vivemos muito fora da ciclicidade do mundo natural, na forma como vivemos o fim de vida e o envelhecimento, o que está a afastar-nos da própria natureza. Nem toda a gente que faz a formação vai querer estar ao serviço enquanto doula, mas há este resgate de si próprio, para poder estar ao serviço de outra pessoa de uma forma mais inteira. A presença de quem está a acompanhar por si só já vale muito e faz toda a diferença. A doula traz esta presença e esta consciência da nossa naturalidade e da amorosidade, mas primeiro precisa de fazer este trabalho em si própria.
Quando estamos vulneráveis, a viver o nosso envelhecimento ou num processo de doença crónica no nosso fim de vida, quem está ao nosso lado e a forma como essa pessoa está ao nosso lado é muito importante. Por exemplo, quando as famílias não aceitam o processo, exponenciam muito o sofrimento de quem está a passar pelo processo de fim de vida e o seu próprio processo. Não quer dizer que a pessoa não fique triste, ou que não passe por todas as fases emocionais que fazem parte do ser humano, mas a doula traz uma presença muito amorosa e com mais tranquilidade. Sabe, também, o que é que está a acontecer em termos de sinais e de sintomas do fim de vida; sabemos o que é que acontece no nascimento mas, no que diz respeito ao nosso fim de vida, ninguém sabe, e também existem sinais e sintomas.
A doula traz estes conhecimentos e, como os tem, traz uma maior tranquilidade seja à pessoa que está a passar por eles, seja às pessoas mais próximas. Aliás, muitos dos pedidos que me chegam são de familiares que querem só falar para entender o processo, muito pela aceitação. Há outras ferramentas que vão sendo aprendidas; a forma como tocar, a forma como falar. Cada doula tem as suas próprias ferramentas, além da base comum; seja terapias complementares, como o reiki ou massagens, mas enquadradas nesta situação específica que é o fim de vida.
Outra coisa muito comum é trazer beleza ao espaço, muitas vezes através dos próprios rituais. Quando uma pessoa está mais vulnerável e dependente, o ambiente é quase hospitalar, pelo que a doula traz um olhar mais alargado que ajuda a criar um ambiente mais amoroso. Quem cuida também tem muito amor, mas como está tão focado na componente técnica, que é legítimo e natural, não consegue ver todo o espaço e amor que existe à volta e que precisa de sentir. A doula transforma este ambiente através de cheiros e de sons, por exemplo.
Mas quem cuida tem de cuidar primeiro de si próprio – é das ferramentas principais. Não ocupamos o lugar do outro, nem caminhamos pelo outro; é o outro que tem de fazer o seu próprio caminho. Caminhamos ao lado para que ele possa caminhar com maior serenidade por todos os processos que está a passar. Na formação, aprendemos que é importante passarmos pelos nossos processos. Temos muitas mortes ao longo da nossa vida, muitos processos de transformação, largamos imensa pele e temos de reconhecer a importância de viver os ciclos, para que consigamos ver no outro a importância dele passar por estes processos. Quando o experienciamos, é muito mais fácil estar ao lado de alguém a acompanhar esse espaço, sem o substituir.
Que impacto é que este apoio também pode ter no luto?
É muito importante. Costumo dizer que a humanidade vive um grande trauma, que é o medo da morte. Isto tem um impacto muito grande na forma como vivemos, como nos relacionamos, como não vivemos os nossos processos de transformação, o que, por seu turno, tem impacto na nossa saúde física. Como já disse, a não aceitação do processo de morte exponencia o sofrimento, e isso tem interferência na forma como vivemos o nosso luto. Por exemplo, quando as famílias oferecem resistência à partida da pessoa que está em fim de vida e não reconhecem, por mais que se explique, os sinais e sintomas, que são naturais – podem tentar alimentar a pessoa quando nem sequer precisa de comer mais ou de mais hidratação, querem despertá-la, querem que seja uma pessoa que já não é e agarrá-la numa fase em que já não está – causa muito sofrimento à pessoa que está a fazer a passagem, e a própria pessoa está a sofrer imenso. Isto tem repercussões depois da morte.
As pessoas associam morte a sofrimento; porquê? Pelas suas próprias resistências. Por isso é a doula traz um novo olhar e uma nova perceção, porque ela existe. A não aceitação do nosso fim de vida exponencia o sofrimento do qual nos queremos afastar. Quando há aceitação – claro que há tristeza, zanga, e revolta – há uma tranquilidade inerente e a vivência do luto é totalmente diferente. Há uma compreensão da fisiologia que também é importante explicar. Perceber o que se está a fazer à pessoa é importante para que não fiquem dúvidas, para que a pessoa fique com a certeza de que fez tudo o que podia. Quem ama quer ter a certeza de que a pessoa está a partir bem e que não está a sofrer. Há sinais e sintomas que a pessoa está a passar, que são naturais, e não são indicativos de sofrimento. Há alterações do padrão respiratório, do estado de consciência, e vai progressivamente deixando de comer e de beber; não quer dizer que a pessoa esteja a morrer à fome. A pessoa está a morrer e vai deixar de comer e de beber, o que é natural, mas não nos é ensinado.
Há muitos lutos e o tempo do luto é muito variável; é o nosso tempo. Não há um tempo fixo, e tem a ver com as nossas vivências. Quando perco um cônjuge, é o luto da pessoa que sou com aquela pessoa, é o luto de quem éramos enquanto casal, é o luto da ausência da pessoa, que tem impacto no meu corpo e nas memórias do meu corpo. O corpo precisa de aprender a viver sem aquele corpo. Então, há muitos lutos que estão a ser vividos, mesmo durante todo o processo de fim de vida da pessoa. Não é só quando a pessoa morre. À medida que a vamos acompanhando vamos vivenciado, por isso a pessoa que está a cuidar também precisa de ter espaço para se cuidar – chorar, sentir-se zangada, e não colocar este processo debaixo do tapete, como muita gente faz. Nada fica debaixo do tapete, e a morte traz tudo.
No momento da morte, começamos a perder o controlo, as coisas vêm, e muitas nem sequer são conscientes. Costumo dizer que são feridas da alma – coisas que não dissemos, que não fizemos, arrependimentos. Às vezes vêm numa forma de grande inquietação psicomotora e a pessoa já não consegue verbalizar, mas vêm. A morte é quase uma chapada, um acordar. Vivemos numa espécie de ilusão, porque sabemos que vamos morrer, mas não queremos olhar para isso. Quando lá chegarmos, logo vemos, e a vida passa-nos ao lado. A morte também é uma oportunidade de despertar, e a maior parte das pessoas que se confronta com a morte tem essa oportunidade de dizer o que ficou por dizer e de fazer o que ficou por fazer, dentro do que é possível. Às vezes, ter alguém que ajude é importante. É uma força adicional, porque sozinho é mais difícil.
Como é que encontrou esta área que acaba por trazer a morte para as 'luzes da ribalta'?
Acho que me encontrou a mim. Achamos que temos uma relação afastada da vida, mas não. Há uma relação simbiótica com a vida e com tudo aquilo que é vivo. Não é só com pessoas, é com o mundo visível e invisível. Sou enfermeira e, quando estava a fazer o estágio de obstetrícia, em Castelo Branco, achei que ia trabalhar para obstetrícia, que é uma área de que gosto muito. Faço muito a ponte entre o nascimento e a morte, porque têm muitas semelhanças – na nossa morte somos nós que nos parimos. Na altura, vi um parto que me deixou estupefacta e, quando vim para Lisboa, não escolhi e comecei a trabalhar em oncologia de cabeça e pescoço. Vi muitas pessoas morrer e o meu processo de transformação e de desenvolvimento pessoal começou por aí. Vinha para casa mal, porque as pessoas não morriam muito bem, e trazia muitas coisas que não eram minhas – por isso é que é importante o autocuidado e reconhecermos o que é nosso e o que é do outro, para também conseguirmos acompanhar o outro.
Fiz muita coisa, numa descoberta muito grande de mim própria e de cura de traumas, que é um processo contínuo. Fiz o curso de doula do nascimento e já tinha estas sementes da morte e dos cuidados paliativos. Pensei que seria maravilhoso criar doulas do fim de vida. Comecei a compilar a informação e percebi que era uma coisa que já existia fora de Portugal há algum tempo. Não adaptei nenhuma formação de fora para cá; criei a formação cá, com pessoas que já conhecia e que trabalham estas áreas nas suas áreas. Já era voluntária e formadora da AMARA, apresentei o projeto e abraçaram-no; fiquei mesmo muito feliz, e fiquei ainda mais feliz por perceber que é uma área que as pessoas querem abraçar, independentemente das suas profissões – sejam profissionais de saúde, artistas, juristas. Toda a gente morre, não há ninguém que não morra.
Enquanto profissionais de saúde sentimos, tal como senti, que a componente técnica é muito importante, o alívio dos sintomas é muito importante, e os cuidados paliativos estão muito aquém em Portugal daquilo que deveriam ser. Já trabalhei em muitos sítios – trabalhei em cuidados intensivos, em obstetrícia, em cardiopneumologia, enfim, e toda a gente morre em todo o lado. É preciso que as pessoas estejam acompanhadas além da componente técnica e mais medicamentosa, e a ciência já evoluiu de forma a que consigamos aliviar muitos sintomas, o que não acontecia há uns anos, e hoje isso não tem de acontecer, de todo. Por isso é que os cuidados paliativos são tão importantes. É uma especialidade da medicina que permite acompanhar as pessoas no seu fim de vida, que pode ser durante muito tempo.
Como enfermeira, sentia que, nas relações que estabelecia com as pessoas, era muito distante. O tempo que passava - e que passo - com as pessoas é muito pouco, porque não tenho tempo para chegar a toda a gente. Mas há um espaço que fica por preencher e, como pessoas, sentimos essa falta de nos centrarmos, com tempo, para podermos criar uma relação e que tudo floresça a partir daí. Para as pessoas fazerem os seus processos de transformação, também precisam de confiar e de estar num espaço seguro, e essa relação tem de acontecer com tempo. Ser doula tem muito esse espaço de tempo para estar com a outra pessoa sem preocupações, e sem ocupar o espaço dos profissionais de saúde; antes pelo contrário. Se a doula vir que a pessoa que está a acompanhar precisa de acompanhamento psicológico, o seu trabalho é indicá-lo. Muitas vezes, também é importante que a pessoa seja acompanhada por uma equipa de cuidados paliativos, para chegarmos a uma equipa multidisciplinar.
O papel da comunidade de doulas passa muito por falar sobre a importância do desenvolvimento dos cuidados paliativos em Portugal, para que as pessoas efetivamente estejam bem acompanhadas. Infelizmente, mais de 70% da população não tem acesso a cuidados paliativos, e isto é grave, muito grave. A maior parte das pessoas não fala sobre isto pelos mitos e preconceitos associados. Ninguém quer falar de morte, ninguém quer falar de fim de vida. Nas notícias fala-se muito dos lares e das pessoas que são mal tratadas, mas e depois? O que é que se faz? Toda a gente sabe que isto acontece, há muito tempo, mas ninguém quer falar sobre isto.
As notícias sensacionalistas acabam por afastar as pessoas ainda mais, mas não falar sobre também não resolve. Todos estamos a envelhecer, todos vamos morrer, e falar da morte é trazer-nos à vida. É lutarmos por aquilo que é realmente viver bem até morrer. A morte faz parte da vida, e não é um momento isolado. Como é que queremos viver esse momento da nossa vida? Como é que queremos envelhecer? Podemos envelhecer muito bem, podemos fazer exercício físico, alimentar-nos bem, dizermos o que temos para dizer, amarmos, sermos amados. Falar da morte é pensarmos sobre como queremos viver plenamente, com prazer, com amor, e bem, para morrermos bem.
É engraçado que as pessoas estranham quando veem amorosidade no momento da morte, mas sempre pôde ser assim. O papel das doulas é trazer esta lembrança, porque sabemos, visceralmente, que isto existe e queremos que seja assim. Mas depende de nós que seja assim, não depende dos outros. Mesmo no caso dos profissionais de saúde, não quer dizer que estejam preparados para envelhecer e para morrer, porque somos todos pessoas e todos temos medos, preconceitos e traumas muitas vezes inconscientes.
Viver a nossa vulnerabilidade é muito difícil. Sentirmo-nos a perder energia e, de repente, estarmos vulneráveis e dependentes de outro é difícil. Mas, se falarmos sobre isto ao longo da nossa vida e deixarmo-nos ser cuidados, torna-se tudo muito mais fácil e pode ser uma grande aprendizagem e uma grande abertura à amorosidade da vida. Toda a gente quer cuidar e ser cuidado, mas é um assunto que tem de ser trazido à vida quando estamos vivos e não só delegar para quando estamos a dar o último suspiro.
Considera que as pessoas que já passaram pela morte de um ente querido ou que já viveram algum trauma estão mais abertas a este tipo de formação, ou recebe também pessoas que simplesmente querem aprender?
Recebo pessoas que já perderam familiares e, por isso, procuram trazer um novo entendimento – é a própria vivência do luto também. Viram que alguma coisa na morte daquele familiar não correu tão bem; não entendem racionalmente, porque nunca falaram sobre processos de fim de vida, mas visceralmente sabem e querem empoderar-se. Outros perderam familiares, filhos, inclusivamente, e estão a viver os seus processos de luto. Por isso é que digo que às vezes as pessoas não estão como doulas e percebem durante a formação que ainda têm coisas para resolver, o que é muito importante em termos de consciência e de quando é que estamos capazes de estar a acompanhar ou não.
Pode até atuar como doula, mas a doula tem esta consciência de si própria. Também há quem queira trabalhar nesta área porque já foram cuidadores ou auxiliares de ação médica. Mesmo profissionais de saúde; trago uma informação fora da caixa, mas querem mesmo esse fora da caixa. Querem trabalhar a espiritualidade e a ligação à natureza que, no fundo, é a ligação a nós próprios, e perceber que isto é normal e natural.
Tem de haver um interesse para si próprio ou depois de ter visto alguém partir, por isso é um bocadinho de tudo. Há doulas do nascimento também, porque existem perdas gestacionais. A morte e o nascimento estão muito lado a lado; quem dá vida dá morte.
Mas é principalmente para si próprias, e depois podem estar ao serviço, ou não.
Como é que tem sido o processo de falar sobre a morte numa sociedade que foge do sofrimento e que prefere acreditar que vai tudo correr bem?
É o que temos vindo a falar e o que tento desconstruir. Queremos muito viver na luz, no pensamento positivo, a manifestar, e eu abano esta estrutura, porque trago o lado ‘negro’. Trago o caos, o interior da terra e os animais que vivem dentro do solo, que toda a gente tem medo, mas que, sem eles, não haveria vida na terra. Tudo aquilo que menosprezamos é o que nos dá vida. Então, muito respeito por isso e pelas nossas sombras, por estes mergulhos internos na escuridão, porque são fundamentais à vida. O caos é importante e aprender a viver com tranquilidade em todas as oscilações emocionais, em todos os processos de transformação, nas vivências que são sentidas no corpo, é fundamental. E não é só ‘pensamento positivo’, porque é quase como enterrar partes nossas.
A raiva, por exemplo, é um sentimento amoroso. A raiva não é um sentimento mau. Mas o que é que fazemos? Reprimimos, até que, de repente, explodimos e torna-se, sim, catastrófico, porque não está integrado. A raiva é o impor de limites, e não aprendemos a integrar esta informação; antes pelo contrário, escondemos. Mas aquilo que escondemos não fica muito tempo debaixo do tapete – manifesta-se através de processos inflamatórios do corpo, das guerras que existem no mundo, da ausência de comunicação.
A natureza é um espelho nosso, e não é por acaso que as estações começam a mudar. Precisamos de aprender a sentir estas emoções no corpo, conhecê-las, e não o fazemos. O que acontece muito é que achamos que a raiva dos outros é nossa, e geramos uma bola de neve. Por isso é que é tão importante conhecermo-nos, estarmos bem ancorados naquilo que é nosso. Se o outro vem com raiva, temos de ter um campo de amorosidade muito bem pré-estabelecido para lhe dar um espaço de tranquilidade que transmita que estamos a vê-lo, que sentimos a sua raiva, mas que estamos aqui. O outro vai expressar essa raiva, mas vai abrandar.
Quem diz raiva diz tristeza, ou outro tipo de emoção que toque nos nossos botões e nos nossos traumas. Se temos medo da morte, não vamos acompanhar alguém que está a morrer, porque tudo o que trazemos dentro de nós acaba por manifestar-se externamente. Só através deste sentir é conseguimos recalibrar e curar aquilo que precisa de ser curado – desde crianças. Há escolas que já fazem este trabalho de não inibir aquilo que a criança, que é expansiva e maioritariamente emocional, traz. É engraçado que, no nascimento, já queremos que as crianças sejam adultos e que aprendam a não chorar. As crianças nascem de um útero, dentro de água, e vêm para um mundo completamente diferente. Sensorialmente é avassalador, e não somos ensinados a ter esta sensibilidade. Vivemos para fazer de tal forma que, qualquer dia, as crianças já nascem a trabalhar.
Também não é suposto uma mãe ser a mulher que era antes; a mulher passa por um processo de transformação, mas ignoramos estes processos e queremos manter a mesma persona que éramos desde que nascemos, o que não é possível. Permitirmo-nos a transmutar as vezes que forem precisas é o natural e é o que nos liga a tudo o que é vivo. Vivemos numa comunidade mas não vivemos, fingimos que vivemos; não nos relacionamos visceralmente. Sei que há mergulhos difíceis e é importante termos alguém ao nosso lado que nos ajude a viver estes processos, que são fundamentais para nos reconectarmos com o mundo, e não fugir constantemente para o conceito de luz. A luz está aqui, o paraíso está aqui, e sempre esteve aqui.
Considera que, atualmente, as pessoas estão a recorrer mais aos serviços das doulas do fim da vida ou há uma barreira socioeconómica e cultural?
Acho que cada vez mais vão havendo mais pedidos. A maior parte das vezes ainda é muito próximo do fim de vida de alguém, quase urgente. Normalmente são pessoas com mais idade, no fim de vida já há algum tempo, mas que, de repente, despertam. Já poderia ter sido iniciado um acompanhamento há muito tempo. As pessoas também chegam as cuidados paliativos já quase no fim de vida, quando deveria de ser muito antes. Ainda há muito o preconceito de que falar sobre isto é como se estivéssemos a atrair a morte, por isso todo o trabalho que poderia ter sido feito até aqui não o é feito.
Depois, há pessoas, às vezes saudáveis, que estão num caminho de desenvolvimento pessoal e querem fazer um trabalho com mais consistência. Têm medo e querem desconstruir esse medo. Outras estão doentes, mas relativamente ativas, e querem também preparar-se para esse momento. Às vezes é a família que pede, mas noto que as pessoas querem falar e refletir sobre isto, seja através do acompanhamento efetivo como doula, ou para a formação.
Em termos de velório, já procuram também fazer uma celebração da vida da pessoa, que permite uma aproximação, e não uma cerimónia tradicional, que pode exponenciar mais o sofrimento. Porque a beleza e a narrativa importam. Por exemplo, há filmes que apresentam a morte de uma forma assustadora, e muitas vezes não é assim. Filmes e narrativas escritas que tragam beleza são muito importantes, porque é isso que nos permite relacionarmo-nos uns com os outros.
A perda de energia do nosso corpo faz com que fiquemos mais débeis, emagrecidos, caquéticos, e pode causar alguma impressão, mas não deixa de haver beleza. O nosso olhar é que tem de mudar. Aprendemos que ser velho é ser feio, é ser um trapo, mas temos de desconstruir isto com trabalho diário. Quando vemos uma morte vivida de uma forma mais difícil, temos medo. Se não queremos isso, temos de trabalhar para que seja mais amorosa, para que estejamos acompanhados, porque pode acontecer. Mas temos de caminhar nesse sentido, de forma individual e coletiva.
Poderá esta prática levar também a que as pessoas regressem à ideia de morrer em comunidade, tal como acontecia no passado?
Vivemos numa sociedade que cada vez mais nos puxa para o individualismo, e falo de um trabalho individual que nos conecta. Já não vamos voltar ao antigamente, mas temos esta informação no corpo. Podemos trazer esta informação ao agora. Independentemente do sítio onde possamos morrer, seja em casa, seja no hospital, seja no lar, é importante que estejamos acompanhados. Sentirmos que não estamos sozinhos e abandonados é importante; toda a gente quer sentir-se vista e amada, principalmente nas suas fases mais vulneráveis e difíceis. Quando estamos felizes e contentes, toda a gente gosta de nós. Mas quando estamos a passar por processos difíceis e dolorosos é que percebemos quem é que está ao nosso lado e quem nos ama. É importante que a comunidade se trabalhe nesse sentido.
Acho maravilhoso se puder ser em casa, mas nem todas as famílias podem acompanhar o fim de vida amorosamente. Já acompanhei algumas em que isso aconteceu, mas se as condições não estiverem reunidas, poderá ser no hospital, ou no lar. Recebemos no hospital muita gente que vem do lar em fim de vida, e a sua casa é o lar. Quem está no lar não está preparado para acompanhar, pelo que é importante que haja este desenvolvimento pessoal, para que as pessoas possam permanecer na sua casa, onde quer que isso seja. A comunidade pode ser em qualquer sítio.
Fonte: Vozes ao Minuto em Noticias ao Minuto, Setembro 2023