Terraformar e o Dia da Terra
Maio 2023
Aqui, no norte global, o Dia da Terra é um evento anual a 22 de Abril que demonstra o apoio à “protecção ambiental.” Foi celebrado pela primeira vez em 1970, e hoje em dia, engloba 1 bilião de pessoas em mais de 193 países. Mas, para chegar à necessidade e celebração deste dia, assim como às celebrações superficiais de greenwashing corporativo, trilhamos um longo caminho de separação e desmembramento. Nos parágrafos seguintes abrimos alguns estreitos alçapões sobre a trama de crenças ocidentais modernas sobre a Terra e o conceito de Terraformação.
Antes de avançar, recordo a hipótese de Gaia, formulada pelo químico James Lovelock e co-desenvolvida pela microbiologista Lynn Margulis nos anos 70, e ainda hoje bastante contestada. Lovelock adoptou o nome de Gaia, a deusa primordial que personifica a Terra na mitologia grega, para nomear esta teoria, que propõe que os organismos vivos interagem com o seu ambiente inorgânico, formando um sistema complexo, sinergético e co-regulador, que ajuda a manter e perpetuar as condições de vida no planeta. Quer isto dizer que a biodiversidade, que se refere a todos os seres vivos, incluindo plantas, bactérias, animais, e seres humanos – as cerca de 8,7 milhões de espécies de plantas e animais – contribuem activamente para manter o planeta habitável, num complexo sistema de trocas químicas e simbióticas, entre pedras, animais e plantas e a água.
Por curiosidade, Gaia era uma das divindades elementares primordiais no panteão grego, nascida no alvorecer da criação, a grande mãe de toda a criação. Algumas fontes modernas, tais como Mellaart, Gimbutas e Walker, afirmam que Gaia como Mãe Terra é uma forma posterior de uma Grande Mãe Pré-Indo-Europeia, venerada nos tempos Neolíticos. Por outro lado, como refere Stephan Harding, embora todos os outros planetas da nossa vasta ecologia cósmica, tenham nomes de deuses greco-romanos, há ainda muito pudor na comunidade científica em assumir um nome para o nosso planeta (pois não pode ser considerado vivo). Naturalmente, que se pode (e deve) colocar a questão: o porquê serem apenas nomes de uma tradição mítica europeia?
Entrando no que nos traz aqui, recordo que no final de Março de 2023, Maristela Barenco, partilhou na sua brilhante palestra “Decolonizando a consciência,” no 1º Encontro de Eco-Mitologia, o pensamento da filósofa Brasileira, Ana Godoy. Maristela, citando Godoy diz: “para dar início à viagem, não basta sair do continente. É preciso perdê-lo como referência.” Barenco continua e refere como o continente tem sido imposto no mundo via inúmeros processos de colonização, e de como, se não perdemos o continente como referência, não questionamos a visão da captura e da domesticação do Outro. Na sua fala, refere ainda de como o olhar universalizante do navegador faria sempre da Terra que se parte a mesma a que se chega. De como o processo se foi replicando, ao sair de continentes e fundar outros continentes, sobre ilhas, arquipélagos ou qualquer coisa, desde que nada mude. Este olhar dogmático que ignora a complexidade e alteridade do outro tem uma série de consequências na forma como somos mundo.
Pela sua subjectividade, Maristela Barenco, toca fundo na política de Terraformação europeia.
Adiciono agora Amitav Gosh, que no seu livro “The Nutmeg’s Curse,” recorda que terraformar é um neologismo inglês, que junta “terra” com “formação” no sentido de “fazer” ou “moldar,” algo como “moldar terra.” Em inglês contemporâneo, a palavra é quase sempre usada relativamente a multimilionários e outros planetas, homens que pretendem terraformar Marte, unilateralmente criar condições de vida, novamente ignorando o complexo sistema de trocas químicas e simbióticas em que a vida sustém a própria vida, como postulado por Lovelock e Margulis. No entanto, não existe razão para que o conceito de “terraformação” não seja aplicável ao planeta Terra.
Gosh, reclama que a ideia de terraformação é muito anterior ao neologismo, dando o exemplo do romance de H.G. Wells, Guerra dos Mundos, onde extraterrestres atacam a Terra com a intenção de adaptar o planeta para o seu próprio uso. Este romance foi inspirado numa das mais conhecidas “guerras de extermínio” coloniais – o conflito que eliminou o povo indígena da Tasmânia após a colonização da ilha pelos britânicos. Wells inverteu a perspectiva no seu romance: avançadas raças alienígenas, pretendem fazer aos habitantes do planeta Terra o que os povos colonizadores fizeram a inúmeros outros – exterminá-los, confiscar as suas terras e adaptá-las para seu próprio uso.
Gosh avança entrelaçando o conceito de terraformação à invasão, controle e domesticação na replicação de “novas-europas,” numa narrativa que se baseia na retórica e no imaginário do império, prevendo o território como uma “fronteira” a ser “conquistada” e “colonizada.” A escala e a rapidez das transformações ambientais das colonizações, modificaram radicalmente mais de um quarto da superfície terrestre em poucas centenas de anos.
O autor reflecte como os processos de terraformação foram aplicados de forma intensiva, “no sentido em que grandes extensões de terra foram redesenhadas para se assemelharem a modelos europeus, para que se adequassem aos modos de vida europeus.”
O que implicou inevitavelmente o enfraquecimento e a eliminação dos modos de vida dos habitantes originais, assim como o extermínio dos variados nichos e biomas de ecossistemas únicos, que foram radicalmente domesticados e normalizados segundo a lógica europeia. Onde havia bisontes passou a haver relva.
Conectamos agora o conceito de continente de Godoy, citado por Barenco com a perspectiva de Terraformação de Gosh. Relembrando o comentário de Maristela Barenco à citação de Ana Godoy, de como o continente tem sido imposto no mundo via inúmeros processos de colonização, adicionamos agora a perspectiva de Gosh, que afirma o projecto de terraformação é fundamentalmente conflituoso, um modo de guerra. Gosh refere: “A terraformação exigiu um tipo de guerra diferente, em que as intervenções ambientais e as entidades não-humanas desempenharam um papel central.”
O autor cita ainda Girolamo Benzoni, italiano, cuja História do Novo Mundo foi publicada em 1565, sobre como os povos indígenas viam os recém-chegados europeus: “Dizem que viemos a esta terra para destruir o mundo. Dizem … que devoramos tudo, consumimos a terra, redireccionamos os rios, nunca estamos quietos, nunca descansamos, mas corremos sempre aqui e ali, em busca de ouro e prata, nunca estamos satisfeitos, e depois jogamos com ela, fazemos guerra, matamo-nos uns aos outros, roubamos, juramos, nunca dizemos a verdade, e privamo-los dos seus meios de subsistência.” Por esta citação conseguimos ter uma ideia do quanto os conquistadores eram ignorantes e arrogantes perante os processos de Gaia, como terra simbioticamente viva, na sua violenta replicação de novas-europas a nível ambiental, alterando e tragicamente simplificando os complexos sistemas ecológicos recém-conquistados.
As guerras de terraformação são conflitos biopolíticos, em que populações inteiras, foram sujeitas a formas de violência que incluíram enormes rupturas biológicas e ecológicas. Como Maristela Barenco refere: sobre o olhar universalizante do navegador que faria sempre da Terra de onde se parte a mesma a onde se chega, percebemos agora que esta não é “só” uma metáfora filosófica ou de forma de percepção, mas reporta a acções biocídas devastadoras com consequências muito reais e actuais.
Voltamos então ao planeta, talvez Gaia, ou talvez com tantos outros nomes, que sabemos agora ser química e simbioticamente vivo, na sua valiosa diversidade contextual, em cada nicho, bioma e ecossistema concreto. Retornamos à necessidade da celebração do dia da Terra, pela história omnícida que nos traz aqui, mas com consciência da profunda perversidade da prática colonial de terraformação.
Que Terra queremos celebrar?
Fonte: Revista Vento e Água - Ritmos da Terra, Artigo de Sofia Batalha Maio