Um Olhar Subversivo sobre a (armadilha da) Resiliência
Abril 2022
Helena Águeda Marujo
Titular da Cátedra UNESCO em Educação para a Paz Global Sustentável
Professora Associada do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
Devemos ter cuidado com todas e todos os que apregoam a ideia de sacrifício pois, no fundo, precisam de alguém que faça sacrifício por eles.
Por isso devemos pensar críticamente o conceito de resiliência como uma potencial armadilha.
Quando falamos de resiliência falamos de algo assim como a capacidade adaptativa de um ser vivo face a um agente perturbador ou a um estado ou situação adversa.
Não costumamos desconfiar da resiliência. Quase todos a defendemos. Passou a ser um conceito hegemónico e a estar na boca de empregadores, economistas, políticos, desportistas...Como um mantra.
Mas mergulhemos um pouco no que pode significar.
Em princípio, altamente louvável. Resistir, suportar, aguentar – quem se oporia a uma tal virtude?
Toneladas de teoria do crescimento pessoal defendem hoje essa arte de enfrentar o pior para sair mais forte. A ideia de que resistir é vencer.
Mas ela pode ser perversa. A resiliência pode querer dizer aguentar. Pode ser um convite a tolerar e a não fazer nenhuma oposição natural ao sofrimento que o próprio sistema em que vivemos provoca. A fazê-lo, até, sem que nos interroguemos sobre as causas do trauma ou do sofrimento ou da exploração de que padecemos. Pode tratar-se de lutar contra os males do mundo – por exemplo, o efeito das alterações climáticas, ou a pobreza, ou a doença física provocada pelos riscos ambientais, ou os riscos psicossociais no trabalho, apenas para dar alguns exemplos – sem lutar contra o mundo que os propaga. Não se lhe toca.
Em três palavras: Aceitar, suportar e superar. E sem medo, claro, porque o medo, faz-nos muitas vezes, pensar. Sem queixas, porque não haverá melhoria pessoal, se não tomarmos os golpes e voltarmos, com um olho negro e uma costela partida, para o ringue onde a luta se dá.
Temos de olhar para o futuro, diz a resiliência, e acreditar que o sofrimento de hoje será a fonte de felicidade de amanhã.
Mas agora já não se trata de aturar o mal. É uma questão de adaptação ao mal. Uma diferença subtil. Mas é aí que reside o busílis.
A resiliência, essa quimera que alguns consideram desastrosa, promovida a categoria de técnica terapêutica face a catástrofes actuais e futuras, pode transformar as suas vítimas em co-gestores da devastação.
Todos concordam em transformar o ser humano num material maleável, capaz de “ricochetear” de cada armadilha e dor, de fazer da sua destruição uma fonte de reconstrução e da sua desgraça a origem da sua felicidade, subjugando-se assim, à sua condição de sobrevivente.
Será a resiliência uma ideologia, com contornos perigosos?
Será um convite ao consentimento face à realidade existente, por mais desastrosa que seja? A resiliência pode ser perigosamente despótica, se contribuir para a falsificação do mundo ao alimentar-se da ignorância organizada?
O convite do aPAZiguar (...) é ir fundo em conceitos que não se discutem, como o da resiliência, e pensar neles de outros ângulos, críticamente, subversivamente. Será que a resiliência acaba exortando o mérito da desgraça? Será que hipoteca a felicidade exigindo que o caminho tem sempre que ser de “sofrer” e aguentar”?
Cada palavra pesa. Cada palavra ataca. Cada palavra tranquiliza. Cada palavra mobiliza.
Cabe-nos a nós reflectir, analisar e assumir riscos para nos mantermos livres. Cabe-nos a nós encontrar as palavras certas, pronunciá-las, escrevê-las com força, descontruí-las, desnudá-las naquilo que nos impõem ou propõem. Cabe-nos a nós rir, desenhar, dançar, amar, desfrutar das nossas liberdades de pensar fundo sobre as coisas, viver de cabeça erguida, perante os fanáticos que gostariam de nos impor o seu mundo de neurose e frustração, em que a dor é o melhor caminho para nos elevarmos.
A este propósito, deixamos referência a livro recentemente publicado em França que debate o tema “Contre la Résilience: a Fukushima et ailleurs (Pour en finir avec) de Thierry Ribault que defende que o sistema encontrou no discurso da resiliência uma arma ideológica para criar uma fábrica de consentimento. E fá-lo sem que a vítima pergunte sobre as causas da dor.
Fonte: E=GPS Education for Global Peace Sustainability