Descolonizar a Ajuda e Construção da Paz

Julho 2023
 

No âmbito do International Development Summer Course, realizado em Junho de 2023, e na Sessão dedicada ao Tema "Organizações Internacionais e Localização", Dylan Mathews, CEO da Peace Direct, relembrou questões que, não sendo novas, continuam a ser difíceis de olhar: "o sistema humanitário é disfuncional...o principal problema são as relações de poder. O sistema não não foi concebido para apoiar o desenvolvimento local. Há esta sensação de superioridade, que nós Norte Global é que sabemos, somos os peritos. Vamos mudar primeiro a nossa mentalidade e só depois as práticas."


Relembra também o Relatório de 2021 referente à consulta desenvolvida pela Peace Direct em Novembro de 2020, em colaboração com a Aliança para a Construção da Paz e a WCAPS - Mulheres de Cor na Promoção da Paz e da Segurança, cujo resumo pode ser lido aqui:


Sumário Executivo

"A descolonização do desenvolvimento, da assistência humanitária e da construção da paz – o movimento para abordar e desmantelar estruturas e normas racistas e discriminatórias que estão escondidas à vista de todos no sistema de assistência – está a emergir como uma discussão urgente, vital e há muito esperada, que acrescenta maior peso aos apelos existentes para transformar o sistema. Se os decisores políticos, doadores, executantes, académicos e ativistas não começarem a abordar o racismo estrutural e o que significa descolonizar a assistência, o sistema poderá nunca vir a ser capaz de se transformar de uma maneira que realmente transfira poder e recursos para os atores locais.(...)


 

Principais Conclusões

- Muitas práticas e atitudes atuais no sistema de assistência refletem e derivam da era colonial, o que a maioria das organizações e doadores no Norte Global ainda têm relutância em reconhecer. Certas práticas e normas modernas reforçam a dinâmica colonial e crenças como a ideologia do “salvador branco”, visível na angariação de fundos e nas imagens de comunicações usadas por ONG internacionais, nas estruturas organizacionais das ONG internacionais no Sul Global e nas atitudes de alguns trabalhadores brancos da assistência internacional que trabalham no Sul Global.

- Os fluxos de ajuda entre as anteriores potências coloniais e as ex-regiões colonizadas refletem frequentemente as suas relações coloniais anteriores, com o poder de decisão concentrado no Norte Global.

- O racismo estrutural está tão profundamente enraizado na cultura quotidiana e na prática de trabalho dos que trabalham no setor que isso afetou a maneira como os funcionários locais consideram as suas próprias comunidades e como se relacionam com as ONG internacionais.

- Parte da linguagem usada no sistema de assistência reforça as perceções discriminatórias e racistas das populações não brancas. A frase “criação de capacitação” foi citada como um exemplo que sugere que as comunidades e organizações locais carecem de capacidades, enquanto outros termos, como “especialista de campo”, perpetuam as imagens do Sul Global como “incivilizado”.

- Muitos profissionais do setor de assistência do Norte Global veem-se a si mesmos, e ao setor mais amplamente, como a operar de forma neutra, o que não é apenas uma ficção, mas também reforça a mentalidade de “salvador branco” e do “olhar branco superior” que tem as suas raízes no colonialismo.

- O racismo estrutural beneficia organizações no Norte Global e também as do Sul Global que sabem como “jogar” com o sistema. O exemplo mais difundido citado na consulta foi o financiamento de oportunidades para programas e investigações que beneficiam um número relativamente pequeno de “suspeitos do costume”, ou seja, ONG internacionais com relações pré-existentes com os doadores.

- Uma das manifestações mais óbvias de racismo estrutural no setor é o sistema paralelo de contratação de funcionários no Sul Global, não apenas em termos de salários e benefícios oferecidos aos funcionários do Sul Global em comparação com os colegas do Norte Global, mas também em como as competências e a experiência são desvalorizadas em profissionais do Sul Global.

- A conceção de programa e de investigação está enraizada nos valores e sistemas de conhecimento ocidentais, o que significa que muitos programas criam inadvertidamente um padrão baseado no Ocidente que se pretende que as comunidades do Sul Global cumpram. O conhecimento local é, à partida, desvalorizado.

- Os desafios enfrentados por funcionários de cor individualmente são ainda amplificados se pertencerem a outros grupos marginalizados, incluindo mulheres, a comunidade LGBTQ*, a comunidade com deficiências, a comunidade não-anglófona, etc. As tentativas de transpor a divisão global-local concentram-se geralmente num grupo de identidade específico, falhando assim em incorporar uma abordagem interseccional.


Recomendações para Doadores, ONG Internacionais e Decisores Políticos
 

1 - Reconhecer que existe racismo estrutural

Reconhecer que o racismo estrutural existe não apaga o que o setor faz bem, nem significa uma rejeição completa da assistência/cooperação internacional. Além disso, o reconhecimento não implica culpa pessoal. No entanto, existe uma responsabilidade coletiva de lidar com o problema. Os doadores e ONG internacionais podem ajudar auditando as suas suposições e práticas, avaliando ao longo do processo como o racismo estrutural pode estar a revelar-se no seu trabalho (ver o diagrama X). Isto poderá envolver o exame de como as suposições racistas, discriminatórias ou tendenciosas arreigadas tiveram impacto no doador ou na relação da NGO com as organizações e pessoas locais, especialmente se os atores locais mantiverem múltiplas identidades marginalizadas que se cruzam. Um primeiro passo importante será colocar uma declaração pública no site da organização e nos seus materiais de comunicação reconhecendo o seu poder e posição dentro do sistema de assistência, os preconceitos que podem ter informado as ações anteriores da organização e a dinâmica de poder sistémica que privilegia certas pessoas acima das outras.
 

2 - Incentivar conversas com donatários e comunidades sobre o poder

Os doadores, decisores políticos e ONG internacionais precisam de despender tanto tempo a ouvir as preocupações dos grupos e comunidades locais sobre os desequilíbrios de poder no sistema, como em relação às suas necessidades materiais, económicas e de competências. As conversas sobre o poder, quem o detém e como é exercido nem sempre serão iniciadas por grupos locais. Assim, os doadores e ONG internacionais precisam de dar oportunidades para uma crítica ao seu poder e práticas. Isto pode ser suscitado pedindo aos donatários que preencham um inquérito anónimo que peça as suas perceções sobre a organização, a sua equipa e as suas interações anteriores com eles. Isto pode ser desenvolvido com a recolha de feedback mais detalhado dos donatários. Um tal processo poderá formar a base para uma conversa e criar as condições que a permitam.
 

3 - Criar espaço para a mudança

As mudanças necessárias no sistema serão impulsionadas por atores de todo o espectro e, por isso, é importante que os doadores e ONG internacionais criem espaços e oportunidades para grupos, organizações e donatários locais partilharem experiências e traçarem estratégias conjuntamente. É especialmente importante criar espaços centrados em torno das pessoas com identidades mais marginalizadas, como mulheres, jovens e pessoas com deficiências. Embora uma tal estratégia possa levar os grupos a desafiar o poder de uma organização ou indivíduo, estes devem estar preparados para aceitar isso, por mais desconfortável que seja. Na verdade, se uma conversa sobre poder não for desagradável, é improvável que se estejam a partilhar opiniões abertas ou honestas, ou que se tenha criado o ambiente propício necessário. Os doadores e ONG internacionais também devem estar cientes de que alguns grupos reivindicarão espaço para mudanças, ao invés de esperarem para ser convidados para um espaço recémcriado, e devem estar abertos à ideia de abrir mão do controlo desses processos.
 

4 - Cuidado com a linguagem

Reavaliar a linguagem existente, bem como adotar uma nova linguagem e terminologias, pode ajudar na mudança de estruturas enraizadas em histórias coloniais para abordagens novas, inclusivas e criativas. Os doadores e ONG internacionais devem eliminar termos que já não são apropriados, como “beneficiários”, “capacitação” e até mesmo “assistência” (termo usado neste relatório). As comunidades locais devem ser autorizadas a liderar a mudança na terminologia, com as organizações a submeter-se a elas sempre que possível e reavaliando quando não o fazem.
 

5 - Incentivar uma cultura de abertura à crítica

É necessário criar uma cultura que se oponha ativamente a uma linguagem e práticas racistas, discriminatórias e preconceituosas. Isto exige que todos falem quando testemunharem incidentes de racismo e/ou discriminação, em vez de colocar a responsabilidade em atores nãobrancos e não-ocidentais. Isto requer também que todas as organizações estabeleçam espaços seguros para a crítica interna, especialmente para pessoas de cor dentro de organizações dominadas por brancos. Estes espaços seguros devem reconhecer género, idade e quaisquer outros fatores que possam ter impacto na disposição de alguém para criticar. Além disso, os líderes da organização devem reconhecer as suas próprias falhas, para encorajar uma cultura de autorreflexão e honestidade.
 

6 - Financiar com coragem

“Financiar com coragem” é um convite aos financiadores para criarem vias de financiamento que sejam mais acessíveis e inclusivas, bem como para aceitarem maiores níveis de incerteza e possível fracasso. Quando os financiadores aceitam a possibilidade de fracasso do programa, isso abre a porta para abordagens de financiamento inovadoras e flexíveis, como serem os financiadores a assumir o peso do trabalho burocrático ou a adotar medidas de sucesso específicas do contexto. Esforços e exemplos neste domínio incluem organizações que arrecadam fundos para mitigar riscos, financiamento direto, financiamento PEER, o Projeto de Filantropia Baseada em Confiança, a definição de metas para o fornecimento de financiamento irrestrito a organizações locais, adaptar requisitos de devida diligência para organizações locais e alteração de critérios de elegibilidade que dão tratamento preferencial às ONG internacionais ocidentais.
 

7 - Recrutar de forma diferente

As organizações devem acabar com a prática de procurar em primeiro lugar pessoal expatriado para qualquer cargo baseado no estrangeiro. Em vez disso, deverá presumir-se que todos os cargos podem ser preenchidos por funcionários locais. Para as organizações com base no “Norte Global”, as ONG internacionais devem garantir que tenham políticas e estratégias para recrutar um grupo de funcionários mais diversificado. Devem ser usados recursos como a declaração de solidariedade em 12 pontos da WCAPS “Orgs in Solidarity” como base para esse trabalho.
 

8- Investir no conhecimento indígena

Parte da descolonização do sistema de assistência consiste em examinar o que se considera dados legítimos e quem é considerado suficientemente qualificado para os recolher. Financiadores e organizações devem investir em investigadores locais, em vez de financiarem viagens de investigadores ocidentais, com a investigação enraizada nos valores indígenas locais e incorporando métodos indígenas. Ao conceber um programa, as ONG internacionais devem trabalhar com os líderes locais para examinar os modelos existentes, quadros lógicos e teorias de mudança, e adotar outros novos, baseados em abordagens locais. Os programas devem ser avaliados através de estruturas culturalmente específicas, criadas por profissionais locais. A especialização deve ser reformulada para requerer a inclusão de orientação, entre outros, por especialistas em juventude, especialistas feministas, especialistas em mulheres e especialistas religiosos/de fé, permitindo assim soluções contextuais, especialização técnica e tomada de decisão ativa liderada localmente. Para garantir que a relação entre financiadores, ONG internacionais e comunidades locais não seja extrativa, os resultados do programa e/ ou investigação devem ser partilhados com a comunidade local e devem responder às suas necessidades, em vez das da organização."

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