Brutalismo - A Perfuração de Corpos e Mentes Faz Parte dessa Repressão - Achille Mbembe
Outubro 2022
A penúltima obra do pensador camaronês Achille Mbembe - Brutalismo (La Découverte, 2020) é a continuação de Crítica da razão negra e Políticas da inimizade. Em Brutalismo, Mbembe amplia a sua análise crítica da lógica mercantil capitalista que impregna as nossas vidas, sempre com a visão de quem observa África, através do prisma pós-colonial.
Se em Crítica da razão negra, Mbembe traça uma genealogia da razão ilustrada e capitalista, que vai do escravo africano ao cidadão mercantilizado e hipervigiado actual, em Políticas da inimizade, examina a figura da guerra, a guerra contra o outro, herança dos processos coloniais, como o “novo sacramento” das nossas democracias.
Em Brutalismo, Mbembe sustenta que, a lógica extractivista capitalista deu um passo a mais: o nosso impacto sobre o planeta é tal que a “humanidade se tornou uma força geológica, assim, não podemos mais falar da história como tal”.
Mais do que nunca, a função do poder, diz Mbembe, é tornar possível a extracção. Isto exige intensificar a repressão utilizando “a lei para multiplicar os estados de excepção e desmantelar a resistência”. Continua Mbembe: “A perfuração de mentes e corpos faz parte” dessa repressão, pois “a fractura, o fissuramento e o esgotamento não concernem apenas aos recursos, mas também aos corpos vivos expostos ao esgotamento físico e a todos os tipos de riscos biológicos, às vezes invisíveis”.
Fracturar, fissurar, extrair, esvaziar são vocábulos que Mbembe toma da mineração, uma das principais atividades económicas no continente africano da época colonial.
O seu imaginário também se inspira na arquitectura dos anos 1950 e 1960, prolífica nos países em desenvolvimento, e do uso generalizado do betão armado. O despejo deste material maleável, composto de óxido de minerais, em grandes formas e a sua posterior solidificação, seria a contrapartida da extracção: encher, moldar, substituir, eventualmente, o ambiente orgânico com matéria inorgânica. Mas não se trata apenas da substituição de ambientes naturais por cidades sem fim, mas também da substituição da actividade humana pela inteligência artificial.
Não sem ironia, Mbembe utiliza o conceito de “grande substituição” – empregado por sectores da extrema direita em referência à substituição supostamente organizada da população branca ocidental por migrantes não brancos – para descrever a progressiva desumanização dos seres humanos e a humanização paralela dos dispositivos de inteligência artificial.
O telúrico, o biológico e o neurotecnológico convergem nesta lógica extractiva-criativa que Mbembe descreve com crueza. Assim como a extracção de minerais gera resíduos, a extracção dos corpos vivos produz matéria humana excedente. São os “corpos-fronteira” que se amontoam nos campos de refugiados e nas fronteiras dos países mais prósperos, populações indesejáveis, descartáveis, que carecem de valor acrescido para a economia capitalista.
A mobilidade restringe-se cada vez mais e as possibilidades de "fazer parte do sistema" diminuem. Pois, sugere Mbembe, "o desejo da maioria de nós, inclusivé daqueles que se insubordinam contra o sistema, não é mudá-lo, mas ser aceite nele com todos os privilégios.".
A leitura do mundo, oferecida por Mbembe, não abre espaço para o optimismo. No entanto, o pensamento crítico, e em particular o pós-colonial, convida frequentemente ao paradoxo e a vislumbrar resquícios naquilo que parece mais sólido.
Ao mesmo tempo em que o mundo se africaniza, no sentido conferido por Mbembe, ou seja, que o destino do negro – originalmente o escravo negro das plantações, despojado de qualquer direito e dignidade – é o destino aguardado para mais e mais indivíduos, num mundo que se parece cada vez mais a uma plantação gigante, Mbembe vê em África, berço da humanidade, o potencial para reverter esse processo de desumanização e desvitalização do mundo.
Há nas cosmovisões daquele continente, uma relação diferente com os objectos inertes, que permite uma crítica às novas tecnologias e ao materialismo dominante que relativiza a dicotomia sem saída entre natureza e artifício que sustenta o pensamento ocidental. Acostumados há séculos a “recriar a vida a partir do invivível”, na experiência africana há também elementos para uma práxis global de adaptação a um futuro de escassez e brutalidade climática.
Contudo, o fundamental para Mbembe é recuperar o sentido dessa humanidade original: a capacidade de preservar o que nos é comum, de restituir e reparar, uma e outra vez, as relações entre nós e entre nós e os outros seres vivos. “Penser et panser”, pensar e cuidar, dizia Mbembe em uma entrevista ao Le Monde, “são inseparáveis para redefinir uma política do bem do mundo, para além do humano”.
Unisinos (adaptado de) Reportagem de Olivia Muñoz-Rojas, publicada por El País [Espanha]. Tradução do Cepat.
Já há mais um livro do Autor publicado em 2021: Out of the Dark Night - Essays on Decolonization