Culturas Regenerativas – Psicologia Comunitária e Plural versus Psicologia Individual e Universal

Dezembro


 

Culturas Regenerativas – Psicologia Comunitária e Plural Versus Psicologia Individual e Universal

Nas últimas semanas, navego pelos temas da Ecopsicologia e da Compaixão, em 2 formações distintas e ambas com uma qualidade e relevância ímpar para os tempos que vivemos.

Enquanto vou observando a decomposição do estado da modernidade, que abordei no meu último artigo, encontro neste tapete colorido e intrincado, coragem, elasticidade e compassividade, para me mover nos mundos interno-externo com coerência e integridade.

Sem negar ou romantizar a dureza do que vivemos, mas mantendo o foco e presença que sustenham esta prontidão para ser útil, para ajudar, para fazer o que é preciso (que nem sempre é o mais confortável).
 

Num mundo em que cada vez mais, se busca o que “está pronto”, é rápido, leve e aparece: o dom, o glamour, o troféu e o aplauso, a prontidão para ser útil, fazer o que é preciso, exige coragem e stamina. Humildade e comunidade.

Numas destas sessões recentes, no âmbito da Ecopsicologia e em concreto sobre Psicologia Comunitária e Indígena, fomos convidados a refletir sobre “Como as noções plurais e interculturais de psicologia, que assentam no reconhecimento do contexto mais que humano como dialogante com o bem-estar humano, confrontam ou expandem a noção de psicologia universalizante e individual ocidental?”

E sendo este um tema que me toca muito e uma das minhas grandes inquietações, partilho neste artigo, um resumo da minha perspetiva, também partilhada com o grupo.
 

Sendo importante deixar antes demais, esta contextualização:

A PSICOLOGIA COMUNITÁRIA é uma aplicação inter e transdisciplinar na abordagem participativa, afectiva e envolvente com as comunidades.

A PSICOLOGIA INDIGENA Baseia-se ...(em) Compreender cada cultura a partir do seu próprio quadro de referência, incluindo o seu próprio contexto ecológico, histórico, filosófico e religioso ou espiritual.

(E ainda) os princípios psicológicos não podem ser assumidos como universalmente semelhantes (...).

As cosmovisões geradas a partir de espaços colonizados foram excluídas do discurso eurocêntrico e americano dominante da Psicologia Comunitária. Podemos observar duas modalidades de colonização: “uma é a apropriação física, territorial, e a segunda é a chamada colonialidade, que procura instalar e controlar o pensamento.”

São vivências psicológicas autóctones, que implicam uma mudança de paradigma, abrindo espaço aos dados culturais, sociais e psicológicos sem os grilhões de quadros conceptuais importados de outros lugares.

Estas abordagens falam de uma Intervenção Comunitária, incluindo competências em práticas transdisciplinares, horizontais, imersas na diversidade e de carácter participativo. Baseadas em confiança, reciprocidade, cooperação e colaboração.” (Curso de Introdução à Ecopsicologia, Sofia Batalha, Escola de Desenvolvimento Transpessoal).

A PSICOLOGIA INDIVIDUAL/Universalizante/Ocidental – Com todo o seu valor e importância dependendo do contexto, não dá resposta em muitas situações, aos desafios complexos que enfrentamos. Por outro lado, com a entrada desta no mundo organizacional e espiritual, há nas últimas décadas, uma apropriação e deturpação de sabedoria indígena e ancestral, que se tem transformado numa verdadeira indústria de Desenvolvimento Pessoal, centrada na classe média/alta, no endeusamento do Indivíduo e na transcedência, e é a partir desta perspetiva que vou abordar esta “Psicologia Individual”.
 

E lembramos a questão “Como as noções plurais e interculturais de psicologia, que assentam no reconhecimento do contexto mais que humano como dialogante com o bem-estar humano, confrontam ou expandem a noção de psicologia universalizante e individual ocidental?”
 

Começamos por aqui: A Psique é Mais que Humana. Imaginem quanta arrogância, achar que a Psique é apenas Humana. As histórias vividas que poderiam ilustrar a minha resposta, não têm espaço para ser aqui partilhadas, antes de mais por questões éticas. Mas eu diria que, o que mais sinto ser chocante, é a forma como a psicologia individual/universalizante/ocidental, focada na separação e domínio (antropocêntrica e individualista), continua a incentivar e premiar uma narrativa altamente baseada na “Jornada do Herói/Heroína” (e da auto-agência), que conduz a um “lugar” de conquista, merecimento, vitória; penalizando e/ou marginalizando quem não se enquadre nesta narrativa, assim como todos os afectados, prejudicados e usurpados por ela.

Por outro lado, hiper-responsabiliza, patologiza e culpa os Seres individuais, por questões sistémicas, vastas, que não podem ser “resolvidas”, “curadas” individualmente.
 

No fundo, creio que esta psicologia individual e universalizante, altamente dogmática e excludente, continua a incentivar a dualidade entre o bem e o mal, o certo e o errado, o “céu” e o “inferno”, a recompensa e o castigo.

Quando oiço os meus pares a incentivar a estratégias de co-criação de abundância (e de auto-agência) que claramente impactam na carência e/ou marginalização de outros seres (Humanos e mais que Humanos) em lugares que nós não vemos (nem queremos ver), é bastante desafiante.

Distorceu-se o conceito de abundância e normalizou-se esta sensação de que, “Eu (Indivíduo) mereço, tenho direito, sem ter em conta a vasta teia coletiva e sistémica de que faço parte. Sem a percepção que a abundância é equilíbrio e não excesso. E que o meu excesso, garantidamente vai causar carência/dano em algum lugar.
 

No meu caso concreto, ao receber muitas pessoas do hemisfério norte, no hemisfério sul, e sendo estas confrontadas com questões práticas destes desiquilíbrios (crianças abandonadas, trabalho indigno, corpos adoecidos pela indústria extractiva dos nossos queridos minérios, mariscos e outros “tesouros”, o confronto e a dor que isto provoca, pode gerar tanto a oportunidade de reflexão, como a fuga e projeção disto num “outro”/nos “maus”.

Uma verdadeira resistência em assumir o nosso emaranhamento e em abdicar dos nossos “direitos/luxos adquiridos”.

Nem sempre é engraçado, ver o expertise dos VUCAS urbanos a esboroar-se fora das arenas familiares, e a auto-confiança dos Co-criadores – Eu Quero, Eu Posso e Eu Consigo, a ser posta à prova num território em que o Mais que Humano (e Humano também) nos pode levar ao limite, muitas vezes somático (porque somos realmente convidados a sair do mental e a recordar canais sensoriais e mamíferos, de diálogo, de relação, de reciprocidade.

E aqui, a compaixão é vital para amparar a vulnerabilidade. Para nós próprios e para os que temos muitas vezes que amparar, fora de consultórios e de retiros perfumados de incenso e outras coisas...que também vêm do sul.
 

Afinal de contas, estamos apenas a ser lembrados (e confrontados com) do claro desrespeito, distorsão e extorsão dos Lugares, que perpetuamos, monopolizando-os à nossa imagem e para satisfazer as nossas necessidades. Não as do Lugar.

Continuamos a fazer, as nossas bolhas de elite, desrespeitando e devastando os Lugares. E a que “nós” vamos de férias, de retiro, sem nos darmos conta do sofrimento, extração, por trás do nosso bem-estar, “cura”, quotidiano.
 

Voltou a ser exibido em Lisboa este mês o Filme Catembe, filmado em 1964, altamente censurado e poucas vezes mostrado mesmo após o 25 Abril. Eu não vivi esse tempo, mas ao ver o filme, reconheço claramente as personagens, os padrões de relação/universalização e exclusão nos dias de hoje.

E sinto, que “praticar” uma psicologia comunitária, a partir do Lugar, onde a relação é valorizada em detrimento da “Entidade/Ser”, onde o plural, diverso, múltiplo é ouvido, respeitado, honrado, é um desafio diário e uma das minhas grandes inquietações. Mas para ser útil ao Lugar, ao mundo e ao bem maior, há que fazer o que (sentimos ser) preciso.


Fonte: Revista Economia & Mercado, Artigo Edição Novembro 2023

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