Quando a Terra Arde, a Regeneração Chama…

Agosto
Quando a Terra Arde, a Regeneração Chama…
Todos os verões, Portugal arde. As televisões transmitem imagens de labaredas que devoram serras, pinhais e aldeias, pessoas desesperadas com vidas em jogo enquanto o fumo encobre o horizonte. O fogo é apresentado como inimigo que precisamos combater: devastador, imprevisível, irracional. Mas será só isso? Ou estará o fogo também a falar connosco, a dizer-nos algo que insistimos em não ouvir?
O fogo não é apenas destruição. É também um mestre antigo. Desde tempos imemoriais, comunidades usaram-no para limpar campos, renovar solos, abrir clareiras. O fogo faz parte da ecologia mediterrânica — muitas plantas, como o sobreiro ou a esteva, aprenderam a conviver com ele. O que mudou, então? Porque é que, em vez de aliado, o fogo se tornou catástrofe?
As raízes da crise: fragmentação e esquecimento
Os incêndios que todos os anos devastam o país não são apenas fruto do calor, da seca ou do vento, ou de interesses encobertos. São sintomas de uma teia de causas mais profundas, acumuladas ao longo de décadas. A desertificação humana e o abandono rural deixaram vastas áreas sem presença e negligenciadas, criando territórios vulneráveis e frágeis. O modelo económico dominante incentivou a fragmentação da paisagem, apostando em monoculturas florestais de crescimento rápido — como o eucalipto e o pinheiro-bravo — que alimentam a indústria mas acumulam risco e inflamam como pólvora. O ordenamento do território foi muitas vezes reativo, pouco atento ao caráter único de cada lugar e às suas dinâmicas vivas, resultando em mosaicos frágeis que não conseguem ser auto-determinados nem ter a vitalidade necessária para se tornarem viáveis e capazes de evoluir ao longo do tempo.
A gestão da terra ficou frequentemente nas mãos de políticas distantes, desenhadas em gabinetes centrais, mais focadas no imediato do que no regenerativo. Acresce ainda uma visão cultural que tende a separar o humano da natureza, tratando a floresta como recurso a explorar ou como espaço vazio, em vez de a reconhecer como ecossistema vivo que nos sustenta e do qual fazemos parte. O resultado é um caldo perigoso: mudanças climáticas que tornam os verões mais longos e extremos encontram territórios fragmentados, desabilitados e desidratados, criando a tempestade perfeita para incêndios de proporções devastadoras.
Desaprendemos que a vida sempre se organizou em sistemas vivos integrais e aninhados — da bactéria ao ser humano, da bacia hidrográfica à biorregião e ao planeta. Em vez de fragmentar, deveríamos aprender a nutrir a integridade (wholeness), cuidando das ligações que mantêm vivos os nossos sistemas sociais, culturais, económicos e ecológicos. Quando esses fios se rompem, a floresta perde vitalidade, integridade, resiliência — e arde.
O abandono do campo trouxe outro esquecimento: o das práticas de convivência com o fogo e as dinâmicas climáticas. Os mosaicos agrícolas, os rebanhos que mantinham a vegetação controlada, as queimadas pequenas e intencionais. Hoje combatemos incêndios com máquinas, mas esquecemos que, durante séculos, os camponeses aprenderam a gerir o fogo com sabedoria.
Incêndios e potencial: uma visão regenerativa
E se os incêndios fossem vistos não apenas como desgraça, mas como apelo a uma mudança mais profunda? A regeneração começa por mudarmos a forma como pensamos, para começarmos a colocar-nos novas questões: Sairmos do pensamento vigente de arrestar o problema, que coloca questões como: “Como podemos limitar a área ardida em cada ano?”, para passarmos a explorar questões que requerem pensamento novo, do tipo “Como regeneramos a nossa forma de habitar a terra no interior do país?”, ou “Que transformações, ao nível do desenvolvimento local e regional, precisamos adotar para nutrir ecossistemas mais resilientes e viáveis?”.
Cada lugar, cada biorregião, tem um caráter e potencial únicos. As respostas não podem ser genéricas e uniformes. Reaprender a habitar a terra significa que cada território se reconhece e se organiza para dar à região e ao país aquilo que só ele pode oferecer: a água da serra, a resiliência do montado, a sabedoria do pastoreio, a cultura única de cada lugar, de cada aldeia.
Para isso, será necessário que pessoas, empresas e instituições cultivem uma cultura de desenvolvimento contínuo de capacidades, colaboração e alinhamento de agendas. Capacidades para desempenhar papéis que nutram vitalidade, viabilidade e capacidade evolutiva em cada lugar, participando em processos coletivos de aprofundamento do entendimento sobre o território e alinhamento de agendas quanto ao seu futuro. Não precisamos mudar tudo de uma vez - precisamos ser inteligentes, capazes de atuar em pontos nodais dos nossos sistemas sócio-económicos e ecológicos - aqueles lugares de alavanca que podem transformar o sistema como um todo e levá-lo a um novo estado de capacidade e potencial.
O campo relacional: onde tudo começa
Esta mudança não se faz apenas com tecnologia ou investimento. Faz-se no campo relacional. No modo como vizinhos colaboram, no modo como empresas se enraízam, no modo como instituições se abrem à co-criação. É neste tecido invisível que se criam novos padrões culturais de confiança, de cuidado, de reciprocidade. Sem este campo relacional vivo, toda a estratégia se desfaz ao primeiro sopro de vento quente.
Podemos imaginar aldeias que voltam a ser o coração vivo da paisagem, gerindo coletivamente a floresta, cuidando do que é comum. Podemos imaginar empresas que não exploram o território à distância, mas se tornam parceiras do seu enraizamento e regeneração. Podemos imaginar políticas que deixam de medir apenas hectares ardidos e começam a medir vitalidade - solos vivos, água que se infiltra; viabilidade - comunidades que se sustêm e têm capacidade evolutiva - lugares que se adaptam a um contexto em mudança acelerada sem perder vitalidade e a sua singularidade.
Conclusão: um novo pacto com a terra
O fogo lembra-nos que a vida nunca é estática. Que o equilíbrio precisa de ser constantemente recriado. Podemos continuar a investir milhões em combate, como quem tapa feridas, olhando reactivamente para os sintomas sem tratar da doença e das suas causas profundas, ou podemos aceitar o convite à regeneração.
Um território regenerado não é um território sem fogo. É um território onde o fogo deixa de ser catástrofe para voltar a ser ciclo de vida. Onde comunidades, empresas e instituições aprendem a agir em prol da integridade sistémica, cultivando capacidades para gerar vitalidade e viabilidade em cada lugar.
O fogo pergunta-nos na cara: queremos continuar a viver numa terra exausta, desidratada e pronta a inflamar-se? Ou queremos aprender a regenerar os laços que nos ligam aos lugares, ao solo, às árvores, aos animais e uns aos outros de forma a nutrimos verdadeira riqueza? No meu entender esta não se mede em números ou em balanços anuais, mas na capacidade crescente de um sistema vivo (um lugar por exemplo) florescer em conjunto.
É quando cada pessoa, cada empresa, cada comunidade, cada ecossistema se torna mais apto a expressar a sua essência e a oferecer o seu contributo único, que a riqueza se renova e se expande. Uma geração de criação de valor só cumpre o seu propósito quando abre caminho à seguinte, ampliando possibilidades, aprofundando relações e deixando atrás de si mais vitalidade do que aquela que encontrou. A riqueza, assim entendida, é um movimento contínuo de evolução: um ciclo onde o servir e o ser servido se entrelaçam, e onde a vida se expressa sempre de forma mais plena.
Portugal precisa de mais do que apagar fogos. Precisa de reaprender, em cada lugar, em cada biorregião, a vitalizar e viabilizar a vida de humanos e não humanos - todos são nossos parentes na teia da vida e a verdadeira riqueza chama pela participação e contributo de todos.
Fonte: Artigo de Nuno da Silva em https://pt.linkedin.com/pulse/quando-terra-arde-regenera%C3%A7%C3%A3o-chama-nuno-da-silva-niwpf
Imagem: Jornal Expresso