Sustentabilidade – Um Passo a Caminho das Culturas Regenerativas
Novembro 2022
Susana Cravo, Consultora e Fundadora da Kutsaca e da Plataforma Reflorestar.org
É a partir do meu Lugar de Aprendiz que aceitei este convite.
Desconfio cada vez mais das opiniões fortes e certezas sólidas e inspiram-me as pessoas com a capacidade de fazer as perguntas certas, que são poucas.
Partimos da pergunta de Daniel Wahl: Porque é que a sustentabilidade não chega?
É na segunda metade do século XX que a sustentabilidade, ganha maior visibilidade, em particular com o conhecido relatório de Bruntland, publicado em 1987, que amplia a definição do conceito “Desenvolvimento Sustentável”, trazendo três questões essenciais: 1 - Dar resposta às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de poderem satisfazer as suas; 2 – Adoptar um modelo de desenvolvimento económico, sem a degradação e exaustão dos recursos naturais; 3 – Garantir a equidade na distribuição de recursos.
Desde então aquilo a que temos assistido, não obstante algumas boas intenções, concretizações e mérito é, ao desgaste, inadequabilidade e até à falta de ética na utilização do termo.
Não é que a sustentabilidade tenha deixado de ser importante, ela é simplesmente um passo para o caminho para aquilo que Daniel Wahl chama de Culturas Regenerativas.
Neste sentido, vale a pena distinguir os patamares fundamentais, que este Autor nos traz, com muita sustentação teórica, científica e prática e que nos ajudam a perceber porque é que a sustentabilidade não chega e devemos caminhar para a cultura regenerativa (‘Design de Culturas Regenerativas’ Daniel Wahl pág. 57), aqui sintetizados com outras perspectivas e naturalmente imbuídos da minha percepção.
Business as usual – É de onde estamos a tentar sair, é o lugar em que as organizações continuam a fazer os seus negócios de sempre, cumprindo apenas as obrigações legais, e como bem sabemos, principalmente em Países onde grande parte da economia é informal e a regulação/fiscalização ainda é muito deficiente, muitas vezes nem isso. Achille Mbembe diz-nos na sua última obra ‘Brutalismo’ que “mais do que nunca, a função do poder é tornar possível a extracção. Isto exige intensificar a repressão utilizando a lei para multiplicar os estados de excepção e desmantelar a resistência”.
Os (falsos) verdes – São aqueles que muitas vezes estão a fazer praticamente o mesmo que o Business as usual, mas acrescentam algo que vai um pouco além das obrigações legais e constroem uma boa campanha de marketing com isso. O chamado greenwashing é aquele com que somos normalmente bombardeados, e não descurando o valor desses contributos, que podem ser importantes, “enquanto continuarmos a celebrar os less bad como Heróis, não vamos a lado nenhum” como nos diz Gunter Pauli, o conhecido homem da economia azul.
Sustentabilidade – O ponto neutro, aquele em que tentamos não prejudicar mais os ecossistemas. E aqui incluem-se comunidades, organizações, biodiversidade, economias, culturas, planeta. Sistemas. Adoptar decisões, medidas, políticas, programas, que não causem mais dano aos ecossistemas. Na prática, os Objectivos de Desenvolvimento sustentável (ODS) estão muito centrados neste patamar, e no paradigma de “Parar a desordem/extracção” e/ou “Fazer o Bem”, embora algumas medidas e programas toquem o patamar restaurativo, reconciliatório e muito pouco ainda, o regenerativo.
Restaurativo – Visa contribuir para a restauração e autoregulação saudável dos ecossistemas. Embora seja mais um passo, ainda nos vê como separados da natureza e por isso manifesta-se muito como “Seres Humanos a fazer coisas pela natureza”. É naturalmente importante, mas está aquém de gerar sistemas vivos.
Reconciliatório – Reintegrar o ser humano como parte da natureza. Neste patamar há já um passo muito importante: perceber a importância da humanidade sair do paradigma antropocêntrico (em que se coloca no topo da pirâmide com autoridade para dispôr da biodiversidade e do planeta como meros recursos ao seu serviço) e de começar a participar na vida, a partir de um lugar mais equilibrado e consciente.
Regenerativo – “Cria culturas capazes de contínuas aprendizagens e transformações em resposta, e antecipação, à mudança inevitável. Culturas regenerativas salvaguardam e aumentam a abundância biocultural para as futuras gerações da humanidade e para a vida como um todo”. (Daniel Wahl)
Pensar e co-criar em conjunto sistemas vivos, que aumentem a vitalidade sistémica e que contribuam para a prosperidade de todos – Humanidade e Seres Vivos.
É um mito continuarmos a achar que os problemas que vivemos em todo o mundo estão separados. Pelo contrário, estão todos ligados e nenhum deles pode ser gerido de forma isolada. Relações, padrões, conexões e contexto são palavras chave a considerar para formular as nossas melhores perguntas-guia.
Aquilo que é vulgarmente conhecido como “Green transition” na maior parte das vezes é o Less Bad. Pode ser um passo para sair da extracção – das pessoas, dos sistemas, do planeta, mas não é aquilo de que nos tentam convencer, e até pode ser um Business as usual disfarçado e oportunista, acompanhado de programas bilionários. Há poucas semanas um responsável do EBI -European Investment Bank alertava para este risco.
Parar a desordem e a extracção – em que se encontram os ODS, é muito importante face ao cenário que vivemos, mas é lamentavelmente o espelho da sociedade infantil actual, em que os Pais/Figuras de Autoridade, têm de castigar as crianças que se portam mal.
Já “Fazer o bem”, em que também se encontram os ODS, pode ser importante e necessário, sobretudo em situações de crise, que infelizmente Moçambique bem conhece, mas está longe de nos preparar para a robustez e vitalidade de um sistema vivo.
Mas então como operam os sistemas vivos? Evoluindo a sua capacidade para a auto-expressão e evolução em direcção ao seu melhor potencial. Tudo, absolutamente tudo o que existe, tem um papel no sistema de que faz parte. Ouvir as suas vozes, prestar atenção à forma como interagem e respeitar a sua essência, já é um grande passo para activar essa inteligência colectiva e vitalidade sistémica.
Isto é extremamente difícil numa cultura rígida, guiada por um pensamento dual e reducionista, pelo já mencionado paradigma antropoêntrico e pela obsessão pelo controlo e por resolver problemas, em vez de manter e desenvolver as condições e relações que garantam o equilíbrio e vida naturalmente existentes. Coisa que os ancestres e índigenas sempre souberam fazer. Não é por acaso que 80% da biodiversidade do planeta (ainda preservada), é cuidada por povos Indígenas, famílias, pequenos proprietários e comunidades locais, que entendem e respeitam os ciclos da vida. (ONU Agricultura e Alimentação).
Moçambique está cheio de sabedoria local, natural e rural. Vejo contudo com frequência, que as decisões (unilaterais) vêm das secretárias da cidade, e por vezes até de cidades de fora do País, que não conhecem de todo, a realidade local. A cultura cresce a partir da base, de forma orgânica. A regeneração acontece a partir do e com o Lugar. Cada Lugar tem os seus próprios Mestres e a sua sabedoria.
Importar programas e best practices são modas que não se coadunam com a bio-inteligência dos Lugares. Geram frustração para todos: Implementadores e “Recebedores passivos” que ainda por cima se prentendem activos, motivados e agradecidos.
E isto é válido para o mundo rural e urbano. Para a machamba e para a organização. Para os corpos e para os solos. Para os buscadores de soluções definitivas, que não conseguem conviver com a incerteza e complexidade, ou seja com o ciclo natural da vida de entropia e sintropia. Para os globalizadores – que ditam as regras - e para os globalizados - que no fundo, como nos diz Achille Mbembe, “querem pertencer”.
É preciso desconstruir esta narrativa, de que as sociedades industrializadas, baseadas na extracção/produção/consumo é que trazem prosperidade e felicidade. Este paradigma de acção, competição, conquista, crescimento, só funciona para muito poucos, e à custa de muitos. Qualquer monocultura rígida, “limpinha” e em permanente produtividade, esteja ela no agro-negócio, na empresa, na cultura, no corpo, não leva à regeneração, leva mais tarde ou mais cedo, à esterilidade e/ou à degeneração. Porque desvirtuar o ciclo natural da vida, é castrar o potencial único do lugar.
E a única forma de dar voz ao Lugar/Sistema, é descentralizar o poder e ouvir todas as vozes. Não são precisos programas bilionários nem importar práticas e programas. São precisos espaços seguros, com significado para quem os habita, fortemente baseados em cooperação (e não competição), onde a sabedoria que já existe, possa ser profundamente escutada, expressada e potenciada. Passa muito por nos abrirmos a novas possibilidades, buscar as perguntas certas (e não as respostas), reimaginar e co-criar futuros juntos.
E para isso, a memória não nos serve de muito. Criatividade, disrupção e capacidade de fazer conexões, de gerar mais recursos e abundância com o que está localmente disponível, isso sim é importante. É a partir deste lugar de pertença, conexão e sentimento de contribuição que se se activa a inteligência colectiva e se caminha em direcção a sistemas vivos. E isto acontece devagar, não dá notícia. É subtil mas fértil, orgânico, vivo.
O assunto é sério, mas como disse Mia Couto numa entrevista recente, “É vital darmos as notícias boas, que criam esperança e vontade de fazer coisas (...)Se atuarmos pela via do medo e teimarmos em encenar o apocalipse, a resposta só poderá vir dos que se apresentam como messias.”
Fonte: Revista Economia & Mercado Moçambique, Edição de Novembro