Trauma e Lugar
Março 2024
Não temos trauma; o trauma têm-nos a nós.
– Báyò Akómoláfé
Muito se tem falado sobre trauma nos últimos tempos. Tanto, que já se tornou uma palavra de uso corrente e o seu significado foi bastante superficializado.
Uma das possíveis definições de trauma é a descrição de desafiantes consequências emocionais que a vivência de acontecimentos angustiantes tem para um indivíduo. Acontece que os acontecimentos traumáticos podem ser difíceis de definir porque o mesmo evento pode ser mais traumático para algumas pessoas que para outras.
Aqui quero alargar o conceito de trauma para a trama que nos envolve, saindo da sua lente exclusivamente humana – o trauma embebido nas estruturas culturais que nos forjam e às quais aderimos em termos de identidade. Quero com isto dizer, que existe uma série de premissas, dadas como normais e até desejáveis, de como devemos “ser humanos” e de como nos cruzamos com a “realidade”. Estas premissas têm a sua própria perversidade, por assentarem em visões dissociadas e muitas vezes profundamente violentas.
Neste pequeno artigo exploraremos duas fontes de profunda amnésia da simbiose da vida: o antropocentrismo e o individualismo; e de como se entrelaçam na relação com os lugares e o mais-que-humano. Tocar nestes dois conceitos fundamentais da nossa cultura do ponto de vista do trauma, abre-nos a outras possibilidades de leitura e relação.
O Trauma do Antropocentrismo
Antropocentrismo significa literalmente centrado no ser-humano. Na forma filosófica é a crença moral de que só o ser humano possui valor intrínseco (e claro, só certos seres humanos, não todos). Em contraste, todos os outros seres têm valor apenas na sua capacidade de servir os humanos, ou no seu valor instrumental.
Este conceito de centralidade hierárquica do ser-humano é seco e asséptico, deixando-nos bastante solitários no topo da escada da vida. Sentados num excepcional trono dourado, com um mundo mudo e inerte aos nossos pés.
O trauma de não pertencer reside também aqui. É um conceito inerente à civilização ocidental que evita e violenta a relação com o mais-que-humano, oculta a senciência da própria vida e recusa qualquer possibilidade de simbiose, pois apenas se baseia no controle, extração de recursos e domesticação. Segundo esta lente instrumental o mundo foi feito para os humanos, o que nos leva a negligenciar e negar todas as outras formas de vida.
O Trauma do Individualismo
As culturas individualistas, tal como a cultura ocidental moderna, enfatizam atributos como a singularidade ou individualidade, os objectivos pessoais, a independência, a autossuficiência e a privacidade. Segundo esta lente cultural, o individualismo tende a ser romantizado e confundido com individuação ou com cuidar de si próprio (obliterando a importância do cuidado comunitário). Nestas culturas modernas, o hábito ou princípio de ser independente e autossuficiente assenta na crença de que cada pessoa é única e que se deve comportar segundo os seus próprios interesses e preferências pessoais e de forma independente. Esta lente nega a nossa base mamífera e gregária, pois sempre pertencemos a grupos, nunca “fomos” sozinhos.
O trauma do individualismo é a negação da responsabilidade madura e da simbiose, pois nunca estamos fora dos nossos múltiplos contextos, e a nossa identidade é sempre relacional.
O individualismo tem uma profunda carência de interligação, conexão e relação. É preciso notar o medo cultural criado nos indivíduos, dos processos relacionais simbióticos dissolverem ou fragmentarem a sua frágil identidade, ou individualidade. O temor de serem engolidos e neutralizados como indivíduos únicos que são. O pânico e profunda amnésia de porosamente pertencerem a comunidades eco-sistémicas mais-que-humanas. O pavor de deixarem de ser eles próprios (o que quer que isso queira dizer).
O paradoxo é que isso já acontece, sendo todos nós aculturados e normalizados numa ideação de individualismo como o desejável a atingir. O que valoriza os nossos traços individualistas, mas negligencia os traços de cuidado e carinho como supérfluos e inferiormente emocionais, negando as relações profundas que nos compõem e atravessam. A questão é que nunca deixamos de ser únicos, mas devemos maturar para além dos interesses próprios e das preferências pessoais e independentes. Somos, sempre fomos, entrelaçadamente responsáveis uns pelos outros.
Trauma e Lugar
Pelo antropocentrismo e pelo individualismo, chegamos à posição que recusa reconhecer que o trauma pode estar também fora de nós. Fora do humano, para lá das nossas histórias individuais. Nas múltiplas relações entre camadas interdependentes de vida.
Por um lado, genericamente, é-nos negada qualquer possibilidade de validação a reacções emocionais relativas às relações com o território. Como a humilhação, o envergonhar ou o negar, de que possam ser despoletados em nós, emoções de luto profundo, trauma, stress pós-traumático ou ansiedade por alterações violentas no território – seja por eventos catastróficos naturais, seja por ações de “progresso” humano, ou ambos. Facilmente somos violentamente envergonhados porque chorámos ao ver as árvores queimadas, ou negligenciados quando ficamos ansiosos todos os verões, porque tudo pode ser queimado de novo. Os Lugares, como paradoxais que são, podem ancorar uma série de catalisadores de angústia e dor, assim como serem chão nutritivo de regeneração e relação.
Aqui no ocidente, a longa história de domesticação humana, acompanhada pela dissociação da promessa da transcendência divina, fez-nos esquecer e desaprender profundamente as ‘nuances’ da relação com os Lugares. Deixamos de ser guardiões, para ser usurpadores medrosos e irresponsáveis. Esta amnésia profunda também é trauma que nos enforma hoje, um desprezo e alheamento da intimidade e reciprocidade a favor da resposta limitada do medo e controle.
O alheamento e dissociação possibilitados pelas crenças antropocêntricas e individualistas que nos enformam, tornam muito desafiante o voltar a uma teia responsável de relações mais-que-humanas. Pois, esta alienação e amnésia, é reiterada diariamente, vivendo nos recônditos da forma como nos movemos culturalmente, e mesmo no nosso metabolismo, ou seja, nas reações e respostas neuro-químicas e hormonais.
Não é apenas uma questão de escolha cognitiva, de decidir que “não seremos mais antropocêntricos ou individualistas”, embora possamos diariamente desinvestir deste tipo de comportamentos e crenças. Podemos abrir-nos a criar amizade com uma árvore, com um troço de um rio ou com uma pedra. Sim.. é tão banal como difícil, pois ninguém dos vai agradecer ou valorizar por isso, não seremos especialistas ou peritos de nada. Apenas nos disponibilizamos a cultivar relações em carinho e responsabilidade. E talvez, lentamente, consigamos assumir o quão longe temos estado.
Fonte: Revista Vento e Água, edição 21 de Março 2024, Artigo de Sofia Batalha